Li quatro livros de relatos de viagem para a URSS e China, entre as décadas de 50 e 60. Delegações de vários países eram convidadas para participarem de eventos nesses dois países. Essas delegações eram formadas por artistas, escritores, políticos, jornalistas, professores, representantes sindicais e de movimentos sociais.
É uma análise interessante de como esses quatro escritores observaram por si próprios o desenvolvimento desses países. Às vezes é um olhar orientalista, outras vezes são choques culturais, mas a maior parte do tempo eles declaram uma admiração imensa pela força do povo que reconstruíram esses países e lutaram contra o imperialismo ocidental e o capitalismo. Os livros são:
- Passaporte para China: Crônicas de viagem, de Lygia Fagundes Telles, Companhia das Letras, 2011, 112 p.
- Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
- Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.
- Viagem, de Graciliano Ramos, Editora Record, 256 p.
Diz o horóscopo que os do signo de Áries não devem de modo algum se arriscar no dia de hoje.Sou do signo de Áries e daqui a pouco, em plena noite, devo embarcar num avião a jato para a China. Escalas? Dacar, Paris, Praga, Omsk, Irkutsk e finalmente Pequim. Quer dizer, atravessarei quatro continentes: América, África, Europa e Ásia. É continente demais, hein!
Uma velha inglesa perdeu os óculos debaixo do banco. E enquanto ajudo a procurá-los ela me pergunta para onde estou indo. Para a China, respondo. “Você então é comunista?”, ela perguntou e tive vontade de rir porque essa mesma pergunta me fez o jornalista Samuel Wainer lá em São Paulo. Eu ia apressada pela rua Marconi quando ele me fez parar, “Aonde vai com tanta pressa?”. Vou tirar meu passaporte para a China! respondi. Ele ficou me olhando meio perplexo, “Mas você é comunista?”. Achei melhor rir, Não, não sou comunista, sou assim subversiva mas não comunista, nem eu nem os meus companheiros de viagem, é uma delegação de escritores convidados para as festas de outubro, desconfio que foi o Jorge Amado que indicou os nomes e daí lá vai a delegação e eu no meio…
Moscou 28/09/1960Sempre achei o russo assim parecido com o brasileiro, com o nosso caboclo — e agora não me refiro ao frágil Jeca Tatu de Monteiro Lobato, mas ao bravo sertanejo de Euclides da Cunha, um homem do sertão, rude, meio selvagem… e ao mesmo tempo, sentimental. Gosta de cantar, dançar e beber com o mesmo ardor com que se empenha numa luta. E alguns gostam também de exibir os tais dentes dourados.Esse era um povo triste? Um povo alegre? Impossível generalizar a alegria ou a tristeza do povo que vi através da janela de um táxi mas descobri que era bom o nível econômico, não vi nenhum mendigo estendendo a mão.
Fiquei emocionada, enfim, a Nova China tinha apenas onze anos de idade e a velha China tinha cinco mil anos, pátria dos antigos sábios e mandarins de roupa dourada e palácios de jade. Afinal, o que ficara daquela civilização milenar? Algumas lembranças de dourada sabedoria mas e a miséria? Está claro que essa miséria não poderia ter desaparecido como num passe de mágica, sim, mas como estava essa nova China que íamos conhecer?
Pelo menos reconhecia seus privilégios burgueses e ainda debochava dela mesma 😆
É preciso repetir que a imagem que eu tinha da China era a de uma população demasiado densa para um país demasiado pobre.Afinal, o burguês não gosta de ficar em contato com uma realidade muito real, ele ama o povo mas é preciso que esse povo fique distante, ninguém quer ouvir as descrições que o escritor Lao Shech fez daquela gente faminta e viciada, comprimida nos bairros sem esgoto e sem água corrente.
Pequim 1 outubro 1960Ocorre-me fazer-lhe perguntas: Ainda não vi nenhuma chinesa pintada, nem as jovens nem as mulheres maduras usam batom ou mesmo pó de arroz, a mulher na China abriu mão das mais elementares vaidades? Nem brincos, nem anéis, nem unhas esmaltadas…Ela ficou séria: “O nosso povo acaba de sair de uma fase terrível e que durou dezenas e dezenas de anos, não podemos nos preocupar com ninharias quando ainda há coisas tão importantes a serem resolvidas. Principalmente nós, as mulheres, nunca tivemos sequer o essencial. Então não podemos agora nos dar ao luxo de pensar no supérfluo, temos é que trabalhar. O resto fica para depois”.Ah! a jovem era parecida com o Wang de fronte pensativa, expressão tão carregada de responsabilidade! Lembrei-me de uma peruana ou colombiana que após alguns dias em Pequim, teria se queixado certa noite ao nosso teatrólogo Guilherme Figueiredo: “Sí, sí, todo es muy lindo, muy bueno… ¡Pero, caramba! ¡Es preciso un poco de corrupción!…”.
Escreveu Mêncio, discípulo de Confúcio e que nasceu por volta de 380 antes da nossa era: “Em primeiro lugar está o povo, em seguida, o país. O rei é o de menos…”.Guardei também o slogan da capital vermelha: “É preciso que o futuro saia do próprio passado”, o que significa que é preciso respeitar a Velha China, com a tradição dos seus palácios e pagodes para deles tirar a inspirada sabedoria de cinco mil anos de vida.Diante do mapa, apontando para a China, Napoleão disse um dia: “Eis um gigante que dorme. Quando ele acordar, fará tremer o mundo”.Ficamos sabendo que o Estado sustenta a Sociedade de Escritores e ainda paga aos escritores um salário mensal. Soubemos também que alguns escritores vivem a serviço da causa socialista e outros, menos ativos, são colaboradores do regime.Para não perder esse contato constante com o povo, para não ficar distante da realidade, o escritor é obrigado a passar temporadas nos meios agrícolas, junto da terra e do homem da terra, conhecendo seus problemas, a sua luta e o seu sonho. Importante notar que também os governantes são obrigados a essas temporadas para que se humanizem, sintam nessa aproximação a vida real da sua gente na luta pela sobrevivência.
Meu amor por Shangai foi assim do tipo amor à primeira vista. Gostei muito de Pequim mas foi a lendária Shangai que tocou fundo no meu coração. Pequim é uma cidade reta como um quartel sem soldados mas com o espírito da inflexível disciplina militar. Shangai é assim meio velada e sinuosa, é tão belo o porto central que vi banhado pela luz do luar.Compreendo agora a razão daquela sombra que passou pelo seu olhar porque para o chinês da Nova China essa Shangai é uma lembrança de humilhação e sofrimento que o estrangeiro ali deixou. Os ocidentais, pequeno-burgueses românticos, ficam mesmo encantados com a beleza da cidade porque não sabem que essa beleza tem gosto de lágrimas e sangue.
Pequim, 18/10/1960Perguntei-lhe se era parente do Salazar de Portugal. Não, não era. E enquanto me oferecia seu livro de poemas, quis notícias políticas do Brasil. Não tardou a pergunta principal: serviria para o Brasil o regime da Nova China?Minha resposta foi sem hesitações: não. Para o Brasil, não daria certo não. Ótimo, sim, para a China, não para nós. Ele indagou então por que eu pensava assim. Tive um sorriso. Difícil de explicar… Só mesmo quem nasceu no Brasil, só mesmo quem mora no Brasil é que compreende bem porque um regime assim não se adaptaria à nossa gente. O brasileiro é inconstante, indisciplinado… E é nessa indisciplina e nessa inconstância que reside nossa modesta felicidade, respondi. “A gente gosta é de brincar, somos muito brincalhões”, prossegui. E nesse momento, Sebastián Salazar entendeu e sorriu. Tinha passado dois meses no Rio, época do carnaval. Conhecia bem o nosso jeitão…
Concordo com ela, a constância e a disciplina do chinês não vem da Revolução, mas sim do confucionismo. Estou lendo os Analectos de Confúcio e sublinhei um trecho que diz:
O mestre disse: “Se você tem consciência das próprias palavras e é coerente com elas e se é determinado e reverente ao agir, então até mesmo nas terras dos bárbaros você progredirá. Mas, se falhar em ser consciencioso e coerente em relação às suas palavras ou reverente ao agir, então, mesmo na sua aldeia, conseguiria progredir? Onde você estiver tenha esse ideal à frente”.
É um povo que trata tudo com muita seriedade, respeito, enaltece a sabedoria e a busca pelo conhecimento, tem projetos em comum com a sociedade do qual faz parte e não são individualistas como no ocidente.
Os outros escritores também elogiaram o comportamento e a disciplina dos chineses.