quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Coisas sobre informação digital que você só descobre quando baixa os livros do Kindle

Passei uma semana inteira baixando os livros do Kindle, porque a partir do dia 26 de fevereiro esta funcionalidade foi desativada e preciso contar alguns "causos".


Na publicação anterior, mencionei que tentei baixar o livro "A origem da família, da propriedade privada e do Estado", do Engels, apareceu uma mensagem dizendo que meu Kindle não era compatível com o formato do livro e não pude fazer o download, porém descobri mais dois livros na mesma condição: "Com Clarice", um livro sobre a amizade de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti com Clarice Lispector, lançado pela Editora Unesp e o livro "Poesía no eres tú", da escritora, poeta, ensaísta, ativista e diplomata Rosario Castellanos, considerada uma das literatas mexicanas mais importantes do século XX.


Eu não sei o formato desses arquivos, mas vi na mensagem de erro que é possível lê-los pelo celular ou tablet com sistema Android, ainda bem que não é pelo iOS, porque boicoto a Apple e eu teria perdido de vez os livros.


Outro dado curioso foi o do livro "The Complete Fiction", da Nella Larsen, além de escritora, foi enfermeira, bibliotecária e fazia parte do movimento de intelectuais negros de Nova York, Harlem Renaissance. Se você observar na imagem abaixo, o nome do autor deste livro no kindle é Sun Tzu, parece que a catalogação de livros é feita por IA e nao por um sistema como o das bibliotecas. Isso me emputeceu tanto que me senti na obrigação de entrar no chat de atendimento ao consumidor e pedir a alteração.


Odeio trabalhar de graça para a Amazon, porque agora está na moda os usuários terem que corrigir a veracidade dos fatos nas redes sociais, um trabalho voluntário nosso para os tech bros que mandaram embora os funcionários que faziam isso. Só o fiz por respeito à obra de Nella Larsen, estamos no Black History Month.

Meter o Sun Tzu na obra de Nella Larsen? Quem já leu "A arte da guerra" sabe o que ele fez com as concubinas favoritas do rei. 

Fico frustrada, pois é bem visível o descaso com os livros escritos por mulheres, mas também fico feliz que fiz o download, estou apenas aguardando a obsolescência programada do meu e-reader para nunca mais ter relação com esta empresa.


Outra curiosidade que notei ao baixar alguns livros, a capa que está no kindle nem sempre é a mesma que vai aparecer em outros dispositivos de leitura, eu tenho dois livros que teve adaptaçao cinematográfica e as capas que apareceram no computador são as imagens dos cartazes dos filmes, mas no Kindle eu vejo a capa original do livro. Algumas capas simplesmente desaparecem, o livro é baixado sem a capa anexada e lá fui eu procurá-las no Google imagens ou criá-las no Canva.

Estas são algumas das capas que criei, são livros de filosofia, teatro, dois autores russos e a obra completa da Alcott.


Nesta imagem acima, a capa de antes, com a guria com vestido rosa, a resolução era péssima, o rosto da menina estava pixelado, entao
depois criei a outra capa com uma boa resolução e com cores que não agridem os olhos. O interessante deste livro é que a capa sempre parece um YA rom-com, mas é sobre um relacionamento altamente toxico entre mãe e filha. Recomendo!

A realidade parece cada vez mais com um livro ou filme sci-fi, eu pareço aquele personagem maluco, ignorado por todos e que quer preservar a autenticidade das coisas do passado. É minha profissão, estudei Arquivologia, vivo para catalogar e arquivar documentos físicos ou digitais, é uma profissão tão underground que quando falo que sou arquivista, perguntam-me o que é isso, mas ela é tão importante para a História e a memória de um país que quando entra um maluco no poder, acontece demissões como esta: Trump fires archivist of the United States, official who oversees government records.


Fiz questão de traduzir este parágrafo do artigo, o nome do sujeito foi substituído por “o inominável”: 

Quando deixou o cargo no início de 2021, o inominável supostamente levou dezenas de caixas de papéis presidenciais, incluindo quase 340 documentos com marcações confidenciais, para sua casa na Flórida. O inominável acabou sendo acusado de 40 crimes, incluindo por supostamente se recusar a entregar alguns dos papéis. Mas depois que o  inominável venceu a eleição em novembro, o então procurador especial Jack Smith o removeu do caso devido à política do Departamento de Justiça contra processar um presidente em exercício.


Entendeu a importância da Arquivologia? A gestão da informação deve respeitar leis específicas, normas ISO, é interligada com dois departamentos da empresa, o jurídico e o de TI - segurança da informação, porque são informações altamente confidenciais ou que protegem dados pessoais e também tem as informações que devem ser acessíveis ao público para comprovar a transparência da organização.

Agora nem sei porque estou falando de Arquivologia se no começo do texto eu estava falando de Biblioteconomia, especificamente de biblioteca digital mal gerida ou gerada ou digerida ou degenerada, nao sei mais.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Os livros adquiridos no kindle não são seus, esta é a última chance de salvá-los

Se você comprar um livro em uma loja física, nenhum livreiro que te vendeu vai bater na sua porta depois tentando pegá-lo de volta. Porém, se você compra no Kindle, ele não te pertence, você compra a licença e o Kindle tem o direito de apagá-lo da sua biblioteca virtual quando bem entender. 

Ao viajar para certos países, não pode utilizar o wi-fi, porque dependendo da região, o Kindle remove os livros comprados no seu país de origem. 

Antes era possivel fazer download dos seus livros para ler no computador ou em outros aparelhos, mas agora aparece uma mensagem que você terá até dia 26 de fevereiro de 2025 para fazer download, um por um, não dá para fazer download de todos ao mesmo tempo. Após o dia 26, não terá mais esta opção e seremos obrigado a ler apenas no aplicativo ou no e-reader da marca Kindle. Isto ainda não acontece com outros dispositivos como Kobo ou Boox.

Depois de fazer o download de todos os livros, é necessário baixar o programa Calibre, se você ainda não tem e o plug-in DeDRM para tirar o DRM (Digital rights management), é usado para controlar o acesso ao material protegido por direitos autorais. Esta booktuber ensina o passo-a passo.

Ao longo de mais de uma década, eu comprei 331 livros no Kindle, somando aproximadamente $3500 dólares canadenses, a maioria deles é de autores brasileiros ou italianos que gosto de ler no original. Para quem mora no exterior, era uma mão na roda comprar livros da Cia das Letras em apenas um clique.
A minha preferência por livros digitais é porque mudo bastante e ter uma biblioteca dentro do e-reader é mais prático do que carregar um monte de livros físicos, também é muito útil em viagens, ainda mais agora que a cada dia que passa as cias aéreas reduzem o peso da mala e livro pesa bastante. 
Ainda tenho muitos livros fisicos, principalmente os de artes, fotografias, HQs e livros didaticos que possuem cores e imagens.
Outra vantagem que vejo em livros digitais é que se um dia você virar um refugiado climático, é mais fácil salvar um e-reader do que uma biblioteca de livros físicos. Tenho uma amiga que perdeu tudo na enchente de Porto Alegre. Sigo o booktuber do canal Chris Library e seu namorado Benji que tem um canal sobre plantas e eles perderam os livros, as plantas, a casa inteira no incêndio de Los Angeles. É de cortar o coraçao!
Eu acho que pelo valor que paguei pelos livros me dá o direito de eles serem meus SIM e estou há três dias fazendo o download de cada um, guardando em um HD externo para protegê-los de todo mal, amém. 
Não tenho intenção de piratear ou enviar para outras pessoas, vou guardá-los só para mim, é apenas um back up, poderia ter pirateado em vez de comprá-los, se eu quisesse, mas preferi gastar uma grana considerável em respeito aos escritores que já ganham pouco e nao acho que eu devo sair prejudicada nesse jogo.

Ironicamente, tentei baixar o livro A origem da família, da propriedade privada e do estado, do Engels e apareceu uma mensagem dizendo que meu Kindle não é mais compatível com o formato do livro e  não me deixa fazer o download, é estranho... Justo este livro? É muita coincidência! Ainda bem que ja li e ele está em domínio público, é possível de baixa-lo em inglês e italiano no Project Gutemberg.


Alguns anos atrás, eles apagaram 1984 e A Revolução dos bichos, de George Orwell, porque alegaram que a editora publicou ilegalmente, infringindo alguns termos e por lei foram obrigados a remover do Kindle e devolver o dinheiro para os leitores. Leia na integra: Amazon Kindle users surprised by 'Big Brother' move.
Tem como piorar? Claro que sim. O Kindle e editoras resolveram tirar passagens racistas ou preconceituosas de livros para passar pano para os autores, muitos deles já mortos, logo sem o consentimentos dos mesmos. Veja mais neste artigo do NYT.
Para mim é importantíssimo manter a versão original para que possamos ver como os racistas se sentiam no direito de subjugar os outros sem nenhuma punição.

Muito coerente com uma passagem de 1984, Winston, o personagem, era arquivista, assim como eu sou e seu trabalho era fazer o revisionismo histórico e a redução da lingua:
“Esse processo de alteração contínua aplicava-se não apenas a jornais, como também a livros, publicações periódicas, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, bandas de som, caricaturas, fotografias - a toda espécie de literatura ou documentação que pudesse ter o menor significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desta forma, era possível demonstrar, com prova documental, a correção de todas as profecias do Partido; jamais continuava no arquivo uma notícia, artigo ou opinião que entrasse em conflito com as necessidades do momento. Toda a história era um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário.
Os livros também eram recolhidos e reescritos uma porção de vezes e invariavelmente entregues aos leitores sem admissão alguma da troca”.
Aqui no Canada é possivel comprar e-books direto do site da livraria, em formato EPUB que é aceito em todos dispositivos eletrônicos, exceto o Kindle. O sistema de bibliotecas também utiliza EPUB, logo nao fico sem acesso a livros em inglês e francês. Para livros em português, posso comprar no Kobo.

Exemplo de uma livraria virtual do Canada, clique na imagem para ampliar. Tem uma mensagem no quadrado cinza  informando que o livro é no formato EPUB e sem DRM.

Como mencionei em um post anterior, estou boicotando ao máximo os tech bros, esses bilionários que querem controlar tudo o que a gente consome, inclusive as nossas leituras. Não entendo como é legalmente aceito que este senhor obtenha o monopólio da literatura virtual, cria regras absurdas e não tem um juiz para barrar esse tipo de abuso. Colocar um tecnofascista como polícia do pensamento, responsável pela biblioteca virtual é o mesmo que deixar lobos cuidando de ovelhas. Concentrar todos os livros, em todos os idiomas, em uma biblioteca virtual e depois apagá-los aos poucos é mais fácil que botar fogo como faziam os fachos de antigamente, não é mesmo?
Para piorar, o Kindle está sendo invadido por livros criados por IA, por fanfics, hot lit, somando a isso o anti-intelectualismo e os livros que precisam fazer parte de aesthetics promovidas no Tik Tok.  Enquanto isso, livros de Toni Morrison, Margaret Atwood, autores LGBTQIA estão na lista de livros censurados. Isso me lembra outra passagem do livro 1984, de George Orwell:
“Havia toda uma série de departamentos autônomos que tratavam de literatura, música, teatro e divertimentos proletários em geral. Neles eram produzidos jornalecos ordinários que continham pouca coisa mais que notícias de esporte, polícia e astrologia, sensacionais noveletas de cinco centavos, filmes transbordando de sexo, e cançonetas sentimentais compostas inteiramente por meios mecânicos numa espécie de caleidoscópio especial denominado versificador”.

É isso que estamos vendo hoje nas redes de bibliotecas e streamings de filmes, eles disponibilizam o que lhes convém, editam os filmes para ter o tempo que eles acham melhor, disponibilizam os filmes ou livros de qualidade duvidosa que não levam ao pensamento crítico, porque o povo quer coisas para relaxar e não para pensar.

Deixo alguns videos para aprofundar a discussao:

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Resumo de janeiro

Neste mês, apaguei as redes antissociais, porque não sou obrigada a fazer parte do circo dos tech bros. Também estou boicotando o máximo que posso as empresas de um determinado país e consumindo local. Eu sei que ações individuais não salvam o mundo, na verdade parece ridículo nadar contra a maré, é como Don Quijote lutando contra os moinhos, mas pelo menos eu tenho a consciência tranquila que não colaboro, não me associo e não gasto nem um centavo com esses parasitas.
Peguei emprestado este trecho do diario da Patricia Highsmith: War is a psychological sickness of man. We should always have been interested in curing it, but only now (rather late) that the more destructive bombs have been invented, have we decided to become more worried, about this psychosis.

Para que esta publicação não seja só chorume, vou compartilhar também as minhas leituras e filmes que li e vi este mês.
L'artiste et son temps, de Albert Camus. Trecho da palestra proferida por Camus na Universidade de Uppsala em 14 de dezembro de 1957 e reproduzida no copilado de suas obras.
Gostei como ele diferencia os fabricantes de artes e artistas, os fabricantes adaptam sua obra para agradar os mecenas e o que a sociedade impoe como moda ou estética, enquanto os artistas sao mais incompreendidos. Sobre artistas que querem ser celebridades:
A maior fama atualmente consiste em ser admirado ou odiado sem ter sido lido. Qualquer artista que tente ser famoso em nossa sociedade deve saber que não será ele quem será famoso, mas outra pessoa com seu nome, que acabará escapando dele e, talvez, um dia, matando o verdadeiro artista que há nele.

Diaspora e Linguística general, dois livros de poemas da minha poeta uruguaia favorita, Cristina Peri Rossi.
Em homenagem póstuma à Adília Lopes, poeta portuguesa que infelizmente veio a falecer dia 30 de dezembro, li O poeta de Pondichéry.

24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary. Esperava mais deste livro, mas até ai, o problema é meu e nao do autor. Pensei que ele fosse se aprofundar mais em exemplos concretos, mostrar o quotidiano de pessoas que trabalham de madrugada em galpões da Amazon, em aeroportos, estudantes que perdem tempo com jogos e redes sociais, como isto influencia na saude fisica e mental das pessoas. Ele falou muito en passant sobre isso e deu muitos exemplos ficticios de livros e filmes de ficção cientifica, afinal o autor é professor de artes e nao historiador, sociólogo ou economista.
Ele menciona uma pesquisa que sugere uma correlação entre crianças que ficam na frente da tv e o autismo. Achei golpe baixo. Até hoje, em 2025, não existe nenhuma prova da causa do autismo. Por isso fiquei com pé atrás.

Infocracia: Digitalização e crise da democracia, de Byung-Chul Han. Este livro, leitura obrigatoria para entender o tempo em que estamos vivendo, é dividido em 5 capítulos:

1. Regime de informação 
É a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos. Não é, então, a posse de meios de produção que é decisiva para o ganho de poder, mas o acesso a dados utilizados para vigilância, controle e prognóstico de comportamento psicopolíticos. O regime de informação está acoplado ao capitalismo da informação, que se desenvolve em capitalismo da vigilância e que degrada os seres humanos em gado, em animais de consumo e dados.

2.Infocracia 
Na infocracia, informações são utilizadas como armas. Infowars com fake news e teorias da conspiração indicam o estado da democracia atual, no qual verdade e veracidade não têm mais nenhum valor. A democracia afunda em uma selva de informações inescrutáveis.

3. O fim da ação comunicativa 
A democracia em tempo real sonhada nos inícios da digitalização como democracia do futuro, se mostra como uma ilusão completa. Enxames digitais não formam um coletivo responsável, que age politicamente. Os followers, na condição de novos súditos das mídias sociais, deixam-se adestrar em gado de consumo por smart influencers, influenciadores inteligentes. Ficam despolitizados. A comunicação dirigida pelos algoritmos nas mídias sociais não é nem livre, nem democrática.

4. Racionalidade digital 
A política será substituída pelo management impulsionado por dados do sistema. Decisões socialmente relevantes serão tomadas por meio do Big Data e da inteligência artificial. Mas vão se tornar secundárias. Não é um mais em discurso e comunicação, mas um mais em dados e algoritmos inteligentes o que a otimização do sistema social promete: a felicidade geral.

5. A crise da verdade 
A crise da verdade é sempre uma crise da sociedade. Sem verdade, a sociedade rui internamente. Mantém-se junta, então, apenas por relações exteriores, instrumentais, econômicas. As avaliações recíprocas, por exemplo, que hoje são praticadas em toda parte, destroem a relação humana ao submetê-las à comercialização total. Todos os valores humanos são hoje submetidos à lógica econômica e comercializados. A sociedade e a cultura se tornam elas mesmas formas de mercadoria. A mercadoria substitui a verdade.


Filmes:


Eraserhead, David Lynch, 1977, body horror, fantasia
La Jetée, Chris Marker, 1962, distopia pos-apocaliptica
Ele esta de volta, David Wnendt, 2014, comédia
Super recomendo os três! 

Musica do mês:

This is what you asked for, heavy is the crown
Fire in the sunrise, ashes rainin' down
Try to hold it in, but it keeps bleedin' out
This is what you asked for, heavy is the -
Heavy is the crown


Agora vamos ver o que fevereiro nos reserva. Um dia de cada vez, respira!