sábado, 17 de maio de 2025

Literatura BRICS: Relatos de viagem de escritores brasileiros na URSS e China. Parte 1: Lygia Fagundes Telles

Li quatro livros de relatos de viagem para a URSS e China, entre as décadas de 50 e 60. Delegações de vários países eram convidadas para participarem de eventos nesses dois países. Essas delegações eram formadas por artistas, escritores, políticos, jornalistas, professores, representantes sindicais e de movimentos sociais.

É uma análise interessante de como esses quatro escritores observaram por si próprios o desenvolvimento desses países. Às vezes é um olhar orientalista, outras vezes são choques culturais, mas a maior parte do tempo eles declaram uma admiração imensa pela força do povo que reconstruíram esses países e lutaram contra o imperialismo ocidental e o capitalismo. Os livros são:

  • Passaporte para China: Crônicas de viagem, de Lygia Fagundes Telles, Companhia das Letras, 2011, 112 p.
  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.
  • Viagem, de Graciliano Ramos, Editora Record, 256 p.
Estes relatos serão divididos em 3 publicações: a primeira com a Lygia Fagundes Telles, a segunda com Jorge Amado e Zélia Gattai e por último, o relato de Graciliano Ramos. 

Relato da Lygia Fagundes Telles 

Setenta e duas delegações do mundo foram convidadas para o desfile de 1° de outubro de 1960, em Pequim, festejando o 11° aniversário da vitória das forças de Mao Tsé-tung contra os nacionalistas de Chiang Kai-shek, o que resultou na instalação da  da República Popular da Nova China.
As crônicas da viagem foram publicadas semanalmente pelo jornal Última Hora, na década de 1960.
Entre os convidados da delegação brasileira, estava a madame Telezê, como o intérprete chinês, o sr. Wang a chamava. A viagem durou 5 dias, com escalas e pernoites em vários países. Hoje em dia é possível chegar a Pequim em 30h no máximo.
A Lygia parecia uma pessoa bem-humorada e uma ótima companhia de viagem.
Diz o horóscopo que os do signo de Áries não devem de modo algum se arriscar no dia de hoje.
Sou do signo de Áries e daqui a pouco, em plena noite, devo embarcar num avião a jato para a China. Escalas? Dacar, Paris, Praga, Omsk, Irkutsk e finalmente Pequim. Quer dizer, atravessarei quatro continentes: América, África, Europa e Ásia. É continente demais, hein!
O medo de ser confundida com comunista 
Uma velha inglesa perdeu os óculos debaixo do banco. E enquanto ajudo a procurá-los ela me pergunta para onde estou indo. Para a China, respondo. “Você então é comunista?”, ela perguntou e tive vontade de rir porque essa mesma pergunta me fez o jornalista Samuel Wainer lá em São Paulo. Eu ia apressada pela rua Marconi quando ele me fez parar, “Aonde vai com tanta pressa?”. Vou tirar meu passaporte para a China! respondi. Ele ficou me olhando meio perplexo, “Mas você é comunista?”. Achei melhor rir, Não, não sou comunista, sou assim subversiva mas não comunista, nem eu nem os meus companheiros de viagem, é uma delegação de escritores convidados para as festas de outubro, desconfio que foi o Jorge Amado que indicou os nomes e daí lá vai a delegação e eu no meio…
As primeiras impressões na Rússia
Foto do arquivo do site Russia Beyond: Moscou dos anos 1950-1970, do fotógrafo soviético, Boris Kossarev (1911-1989).

Moscou 28/09/1960
Sempre achei o russo assim parecido com o brasileiro, com o nosso caboclo — e agora não me refiro ao frágil Jeca Tatu de Monteiro Lobato, mas ao bravo sertanejo de Euclides da Cunha, um homem do sertão, rude, meio selvagem… e ao mesmo tempo, sentimental. Gosta de cantar, dançar e beber com o mesmo ardor com que se empenha numa luta. E alguns gostam também de exibir os tais dentes dourados.
Esse era um povo triste? Um povo alegre? Impossível generalizar a alegria ou a tristeza do povo que vi através da janela de um táxi mas descobri que era bom o nível econômico, não vi nenhum mendigo estendendo a mão.
As primeiras impressões na China
Madame Telezê em Pequim

Pequim 29/09/1960
Fiquei emocionada, enfim, a Nova China tinha apenas onze anos de idade e a velha China tinha cinco mil anos, pátria dos antigos sábios e mandarins de roupa dourada e palácios de jade. Afinal, o que ficara daquela civilização milenar? Algumas lembranças de dourada sabedoria mas e a miséria? Está claro que essa miséria não poderia ter desaparecido como num passe de mágica, sim, mas como estava essa nova China que íamos conhecer?

Pelo menos reconhecia seus privilégios burgueses e ainda debochava dela mesma 😆

É preciso repetir que a imagem que eu tinha da China era a de uma população demasiado densa para um país demasiado pobre.
Afinal, o burguês não gosta de ficar em contato com uma realidade muito real, ele ama o povo mas é preciso que esse povo fique distante, ninguém quer ouvir as descrições que o escritor Lao Shech fez daquela gente faminta e viciada, comprimida nos bairros sem esgoto e sem água corrente.

A madame Telezê era muito elegante e vaidosa, estava preocupada com as mulheres chinesas que não usavam maquiagem:
Pequim 1 outubro 1960
Ocorre-me fazer-lhe perguntas: Ainda não vi nenhuma chinesa pintada, nem as jovens nem as mulheres maduras usam batom ou mesmo pó de arroz, a mulher na China abriu mão das mais elementares vaidades? Nem brincos, nem anéis, nem unhas esmaltadas…
Ela ficou séria: “O nosso povo acaba de sair de uma fase terrível e que durou dezenas e dezenas de anos, não podemos nos preocupar com ninharias quando ainda há coisas tão importantes a serem resolvidas. Principalmente nós, as mulheres, nunca tivemos sequer o essencial. Então não podemos agora nos dar ao luxo de pensar no supérfluo, temos é que trabalhar. O resto fica para depois”.
Ah! a jovem era parecida com o Wang de fronte pensativa, expressão tão carregada de responsabilidade! Lembrei-me de uma peruana ou colombiana que após alguns dias em Pequim, teria se queixado certa noite ao nosso teatrólogo Guilherme Figueiredo: “Sí, sí, todo es muy lindo, muy bueno… ¡Pero, caramba! ¡Es preciso un poco de corrupción!…”.
Pois a senhora fique tranquila, descanse em paz, porque hoje estão todos maquiados, as meninas, os meninos and everybody in between.

Atrizes chinesas
The 9, c-pop girl group
MR-X, c-pop boy group
 Jackson Wang fazendo publi de batom

Escreveu Mêncio, discípulo de Confúcio e que nasceu por volta de 380 antes da nossa era: “Em primeiro lugar está o povo, em seguida, o país. O rei é o de menos…”.

Guardei também o slogan da capital vermelha: “É preciso que o futuro saia do próprio passado”, o que significa que é preciso respeitar a Velha China, com a tradição dos seus palácios e pagodes para deles tirar a inspirada sabedoria de cinco mil anos de vida.

Diante do mapa, apontando para a China, Napoleão disse um dia: “Eis um gigante que dorme. Quando ele acordar, fará tremer o mundo”.

Ficamos sabendo que o Estado sustenta a Sociedade de Escritores e ainda paga aos escritores um salário mensal. Soubemos também que alguns escritores vivem a serviço da causa socialista e outros, menos ativos, são colaboradores do regime.
Para não perder esse contato constante com o povo, para não ficar distante da realidade, o escritor é obrigado a passar temporadas nos meios agrícolas, junto da terra e do homem da terra, conhecendo seus problemas, a sua luta e o seu sonho. Importante notar que também os governantes são obrigados a essas temporadas para que se humanizem, sintam nessa aproximação a vida real da sua gente na luta pela sobrevivência.

A imagem que ela tinha de Shangai, era a que ela tinha visto em filmes americanos que falavam da guerra do ópio, corrupção, pobreza e prostituição. Porém ela viu com os próprios olhos que não era mais assim.
Delegação brasileira em Shangai


Shangai, 12/10/1960
Meu amor por Shangai foi assim do tipo amor à primeira vista. Gostei muito de Pequim mas foi a lendária Shangai que tocou fundo no meu coração. Pequim é uma cidade reta como um quartel sem soldados mas com o espírito da inflexível disciplina militar. Shangai é assim meio velada e sinuosa, é tão belo o porto central que vi banhado pela luz do luar.
Compreendo agora a razão daquela sombra que passou pelo seu olhar porque para o chinês da Nova China essa Shangai é uma lembrança de humilhação e sofrimento que o estrangeiro ali deixou. Os ocidentais, pequeno-burgueses românticos, ficam mesmo encantados com a beleza da cidade porque não sabem que essa beleza tem gosto de lágrimas e sangue.
Conversa com o poeta peruano Sebastián Salazar:
Pequim, 18/10/1960
Perguntei-lhe se era parente do Salazar de Portugal. Não, não era. E enquanto me oferecia seu livro de poemas, quis notícias políticas do Brasil. Não tardou a pergunta principal: serviria para o Brasil o regime da Nova China?
Minha resposta foi sem hesitações: não. Para o Brasil, não daria certo não. Ótimo, sim, para a China, não para nós. Ele indagou então por que eu pensava assim. Tive um sorriso. Difícil de explicar… Só mesmo quem nasceu no Brasil, só mesmo quem mora no Brasil é que compreende bem porque um regime assim não se adaptaria à nossa gente. O brasileiro é inconstante, indisciplinado… E é nessa indisciplina e nessa inconstância que reside nossa modesta felicidade, respondi. “A gente gosta é de brincar, somos muito brincalhões”, prossegui. E nesse momento, Sebastián Salazar entendeu e sorriu. Tinha passado dois meses no Rio, época do carnaval. Conhecia bem o nosso jeitão…

Concordo com ela, a constância e a disciplina do chinês não vem da Revolução, mas sim do confucionismo. Estou lendo os Analectos de Confúcio e sublinhei um trecho que diz: 

O mestre disse: “Se você tem consciência das próprias palavras e é coerente com elas e se é determinado e reverente ao agir, então até mesmo nas terras dos bárbaros você progredirá. Mas, se falhar em ser consciencioso e coerente em relação às suas palavras ou reverente ao agir, então, mesmo na sua aldeia, conseguiria progredir? Onde você estiver tenha esse ideal à frente”.

É um povo que trata tudo com muita seriedade, respeito, enaltece a sabedoria e a busca pelo conhecimento, tem projetos em comum com a sociedade do qual faz parte e não são individualistas como no ocidente.  

Os outros escritores também elogiaram o comportamento e a disciplina dos chineses.

Para terminar, um video da Lygia dizendo que Clarice Lispector achava que ela tinha um defeito 😆. Essa viagem mencionada deve ter sido ótima, as duas eram muito engraçadas, elas tinham sido convidadas para o 1° Congresso mundial de Bruxaria, em Bogotá, na Colômbia, em 1975. Acharam esquisito, mas uma sagita e uma satanáries nao iriam perder um evento desses. Tem um texto muito interessante falando disso no site do Instituto Moreira Sales: Eu, bruxa?

Nenhum comentário:

Postar um comentário