sábado, 14 de junho de 2025

Literatura BRICS: Relatos de viagem de escritores brasileiros na URSS e China. Parte 2: Jorge Amado e Zélia Gattai

Nesta publicação, continuidade da anterior, irei comentar sobre dois livros que relatam as viagens de Zélia Gattai e Jorge Amado na URSS e China:

  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.

"Jardim de Inverno" é um livro de memórias no exílio de Zélia Gattai. Em 1947, começo da Guerra Fria, Jorge Amado era deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil que foi colocado em ilegalidade e os mandatos dos parlamentares foram cassados. Eram vigiados e começaram a ser presos. Livros de Jorge Amado foram apreendidos como subversivos, então ele se exilou na França por um tempo, mas também perderam o permis de séjour e foram para a então Tchecoslováquia. Zélia narra o tempo em que passaram lá, as viagens para a URSS, para China e vários outros países, os amigos que fizeram, o nascimento da filha, o filho que com 2 anos falava português, francês e tcheco, etc. Ela é uma ótima contadora de "causos".

Zélia em Moscou, 1948. Foto arquivo Fundação Casa de Jorge Amado

Zélia tem uma visão mais crítica e detalhada dessas viagens, ao mesmo tempo que ela estava empolgada com tudo, ela também tinha um choque de realidade e mostrou que nem tudo eram flores. Já Jorge Amado preferiu se abster de opiniões negativas sobre esses lugares.

Começarei com a viagem para a Rússia e em seguida para a China. Tudo começou quando Jorge Amado foi laureado com o Prêmio Stalin da Paz que antes chamava Prêmio Lenin. Este prêmio parece o Nobel, criado como mea culpa, talvez. Alfred Nobel inventou a dinamite, tinha fábricas de tanques de guerra e criou o Prêmio Nobel da Paz. Como disse George Orwell, Guerra é paz.

PRÊMIO STALIN DA PAZ

Um telegrama de Ehrenburg, enviado de Moscou, anunciava a Jorge que lhe fora concedido o Prêmio Internacional Stalin da Paz.

 A cerimônia solene da entrega do prêmio a Jorge realizou-se no grande salão da Academia de Ciências da União Soviética, lotado por inúmeros amigos, escritores e altas personalidades. Ao fundo, suspensos na larga parede, enormes retratos de Lênin e Stalin. Como de praxe, o Presidente da Academia, após proferir umas palavras de louvor ao premiado, colocou-lhe a medalha no peito, entregou-lhe o diploma. Ilya Ehrenburg o saudou com palavras cálidas e afetuosas. Os dois amigos se abraçaram, emocionados.

Se você quiser saber mais sobre o Ehrenburg, deixo aqui um artigo do site Janela para Rússia que é uma ótima fonte de informação sobre este país: 5 curiosidades sobre Ehrenburg, o amigão de Jorge Amado que previu Hiroshima e deu nome a uma era.
Amado e Ehrenburg em Moscou
MOSCOU
A cada estada em Moscou eu lavava a alma, tirava a forra! Assistia aos mais maravilhosos espetáculos de teatro, espetáculos de todos os gêneros, peças representadas por grandes atores, bailes dançados pelos maiores bailarinos do mundo. Desta vez, no entanto, não pudera assistir a tudo que desejava. O tempo era curto demais para atender a tantos convites e solicitações.
Depois da premiação,  foram de trem, o Transiberiano, até a Sibéria, com duração de 5 dias e lá pegaram o avião para China.
Jorge Amado e Nicolás Guillén no Transiberiano

O CONVITE DE MEUS SONHOS
Emi Siao telefonara-lhe de Praga para anunciar que havia chegado, por seu intermédio, um convite para nós dois, da União de Escritores Chineses, visitarmos a China.
Jorge sabia do meu encanto pela China, de meu enorme desejo de conhecê-la. Durante toda a vida, desde criança, eu tivera curiosidade por esse país tão imenso e tão distante, tão cheio de magias e de belezas, sem nunca ter imaginado vê-lo de perto, assim como jamais me passaria pela mente ir à Lua, Marte ou Vênus. Para mim a China era inatingível, nada além de sonho. Após a vitória da Revolução Socialista em 1949, no entanto, passei a alimentar a esperança de uma possibilidade.
 Eles chegaram na China junto com Pablo Neruda e sua esposa Matilde:
Neruda e Matilde Urrutia
No aeroporto, à nossa espera, estavam o poeta Ai Qin, um representante do Ministério da Cultura e um intérprete de francês. Tanto nós quanto os Neruda éramos hóspedes da União de Escritores. Àquela altura, vários livros de Jorge já estavam traduzidos e publicados na China: São Jorge dos Ilhéus, Seara Vermelha e O Cavaleiro da Esperança. Terras do Sem Fim tinha sido reeditado pouco antes, e sua popularidade entre os leitores chineses crescera muito. Neruda também era muito festejado, não apenas por sua atuação política como, sobretudo, por seus poemas traduzidos para o chinês.

  

Jorge Amado, Zélia Gattai, Pablo Neruda e Matilde Urrutia recebidos por Ding Ling e outros/as escritores/as chineses em Pequim, 1957. Fonte: Tricontinental

Depois desse depoimento, ela teve o primeiro choque de realidade, enquanto atravessavam de barco de Kuo-Ming a Pequim, pelo rio Yangtze, o intérprete traduziu o jornal que estava lendo e eles perceberam que a situação política não era a das melhores. Ela começa a frase com a palavra “possivelmente”, ou seja, pode ser paranoia da minha cabeça ou pode ser pior do que eu imaginava, mas historicamente já sabemos do resultado da Revolução Cultural, se foi bom ou ruim cabe a cada um julgar por si próprio.
Possivelmente, o jornal publicava notícias que deixavam transparecer a situação calamitosa que se instalara na China: a era do sectarismo e do patrulhamento ideológico, início das perseguições, sobretudo aos intelectuais e artistas, do medo das "críticas" que podiam resultar em prisão e desterro. Fase negra da vida chinesa que viria culminar com a chamada Revolução Cultural, que atiraria ao cárcere e ao desterro os poetas Emi Siao e sua mulher Eva, o próprio Ai Qin, a escritora Ting Ling e tantos outros intelectuais amigos nossos.
Ching Ling e Pablo Neruda

Fui procurar saber mais sobre a Ting-Ling (ou Ding Ling ou Ching Ling) e achei um artigo ótimo do boletim de arte Tricontinental:  A criação é uma ação política, e um escritor é uma pessoa politizada. Ela parecia ser uma pessoa incrível.

Zélia afirmou:

Ao regressar ao Brasil, Jorge publicou na Coleção Romances do Povo, que dirigiu para uma editora do Rio, a tradução de um dos romances mais populares de Ting-Ling: O Sol sobre o Rio Sang-Geang. 

E eu questionando para mim mesma: Gente, cadê essa tradução? Ela existiu porque achei a foto da capa (imagem ao lado) nos arquivos da Cambridge University Press.
Como a curiosidade matou o gato, fui pesquisar sobre esta coleção “Romances do Povo”, nunca vi esses livros em lugar nenhum. Deparei com uma tese intitulada “A Editoral Vitória e as edições comunistas no Brasil: da legalidade ao golpe (1944-1964)”, de Vinicius de Oliveira Juberte, USP, 2023. A resposta está nos capítulos 4 e 5.

Achei algumas obras dela apenas em inglês. Penei para encontrar informações dessas pessoas ou suas obras, principalmente nas mídias ocidentais. Posso afirmar que é um apagamento histórico intencional, com a ditadura na América Latina, os livros sino-soviéticos desapareceram.
Voltarei a falar no próximo post desses escritores chineses mencionados. O plot twist quando fui consultar algumas fontes chinesas, fui atrás de informaçoes e voltei com fofocas edificantes.

Depoimento sobre a programação turística:
OS PROGRAMAS 
A União de Escritores traçara um roteiro para nossa estada: além de Pequim, viagens a Hang-Zhou e a Xangai. Em Pequim visitaríamos o Palácio de Verão, o Palácio Imperial, a Cidade Proibida com o Templo do Céu e o Templo da Terra, iríamos ver de perto a Grande Muralha. Seríamos recebidos na União de Escritores para um encontro com ficcionistas e poetas, e, nos roteiros noturnos, o forte seria o teatro. Pedimos que incluíssem no programa algumas tardes livres, queríamos sair andando pelas ruas ao deus-dará, sem compromisso, como tanto gostamos de fazer. 
A GRANDE MURALHA

A pessoa que nos acompanhara na visita à Grande Muralha sabia tudo sobre a construção daquela obra única, construção que data de três séculos antes de Cristo.

Se a distância ela me impressionara, parecendo-me uma serpente descomunal, de perto me esmagara. Nosso acompanhante devia ser um especialista no assunto, sabia na ponta da língua datas, cifras, dimensões… Tudo muito instrutivo, mas eu não conseguia prestar atenção ao que ele dizia, no estado de emoção em que me encontrava. Aliás, sempre fui de opinião que explicações diante de uma obra de arte, em vez de ajudar, atrapalham. Nas excursões, por exemplo, enquanto o guia turístico dá sua aula ao grupo que o acompanha, as pessoas, ao prestarem atenção ao que ele diz, deixam de apreciar, livremente, de se emocionar diante de um quadro ou de uma escultura, para em seguida esquecer todas as datas, locais, títulos de nobreza etc. que o erudito guia lhes declamou momentos antes.

Foram conhecer o atelier do Qi Baishi, levou um tempo para eu entender que em português se fala Chi-Pai-Che. Eu tenho um livro de artes dele, eu fiquei até emocionada com o privilégio que eles tiveram de conhecê-lo e de adquirir suas obras. Também fiquei chocada ao saber (contra a minha vontade) que ele era eunuco. 

Qi Baishi, pintor (1864-1957) + monumento em sua homenagem em Xiangtan, província de Hunan

CHI-PAI-CHE

Ainda existia em Pequim, como já disse, comércio privado, sobretudo de casas de antiguidades. Foi numa dessas lojas que Jorge comprou dois quadros de um pintor famosíssimo, Chi-Pai-Che, considerado um dos maiores artistas contemporâneos da China.

O governo chinês quis homenagear Jorge, que vinha de receber o Prêmio Stalin da Paz, oferecendo-lhe um quadro pintado especialmente para ele por Chi-Pai-Che, com o tema da paz. Certa manhã nos levaram à residência do artista, ele pintaria o quadro em nossa presença. O pintor já passara dos noventa anos e apenas pela manhã tinha energia para pintar. Abriu-nos a porta um ser estranho, um velho eunuco, empregado da casa. Fora castrado em criança para servir no harém do Imperador.

Operação que Chi-Pai-Che realizou em pouco mais de uma hora, sobre a folha de papel virgem. Alcançara, com suas mãos trêmulas, o milagre de transformá-la, diante de nossos olhos, em obra de arte. Com pinceladas firmes, sem nenhuma vacilação, conseguira traçar linhas puras, fizera nascer maçãs frescas e coloridas e um casal de pombos enamorados. Em chinês, hou é pombo e ping, maçã — hou ping significa paz.

Ela gostava de brincar com os amigos chineses sobre a procedência do macarrão. 

BERÇO DO MACARRÃO

Comentei com Liú: — Garanto que na Itália, berço do macarrão, não existem espaguetes deste tamanho… Pelo menos eu não vi…

Senti que Liú ficou picado: — A Itália, berço do macarrão? A camarada está muito enganada… A massa de farinha e ovos, o macarrão, nasceu na China. Quem o levou para a Itália foi Marco Polo.

Nas três viagens que fizemos à China, repeti a brincadeira, provocando os amigos chineses, tirando-lhes a paternidade do macarrão, dando-a aos italianos, que a honram tanto.
As provocações foram sempre revidadas em seguida, cansei de ouvir a história de Marco Polo, o andarilho veneziano que gostou tanto da pasta chinesa que até a levou para a Itália.
Muito me impressionou a forma realista, pé no chão que ela descreveu sobre suas experiências vividas.

Zélia e João embarcando para Europa, 1948. Foto arquivo Fundação Casa de Jorge Amado
Nesse porto de Gênova eu desembarcara em 1948, com uma criança nos braços, no peito muito amor e muita coragem. Houve quem me tachasse de irresponsável, ao ver-me sair mundo afora ao encontro de meu companheiro com um filho pequeno. Agora, em 1952, neste mesmo porto de Gênova, ao partir de volta para casa, eu já não era a moça ingênua que lá aportara, cheia de ilusões, sectária, limitada, com uma visão idealista do mundo. Vivera um tempo longo de saudade e de nostalgia, um tempo dramático de guerra fria, macarthismo, stalinismo, injustiças, desconfianças, acusações e delações: o medo desenfreado condicionando a existência das pessoas. Passara a conhecer melhor a vida. Não fora fácil, mas a gente vai aprendendo sem parar, apanhando para aprender: eu apanhei bastante.
Sofri, mas também tive os melhores momentos de minha vida: pela mão de Jorge corri mundos próximos e distantes, conheci povos e países, convivi com grandes homens, de alguns deles me tornei amiga. Voltava outra mulher, amadurecida, cabeça arejada, disposta a seguir meu rumo sem vacilações.
Na versão de Jorge Amado no livro "Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei", é exatamente o que está descrito no título, não tem pretensão nenhuma em escrever memória. Ele declara logo no primeiro capitulo "Moscou, 1952":
Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos demais. 

 Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e consequências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga consequência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo.

O livro dele foca mais em anedotas, no contato com as pessoas que conheceu e choques culturais. No capítulo “Pequim,1987”, ele pergunta ao tradutor Fan Weixin como ele traduziu as patifarias de Vadinho de Dona Flor e seus Dois Maridos e ele respondeu: - Ao pé da letra. 
Depois perguntou à Ting-Li, esposa do Ho-Ping que leu Dona Flor em chinês e inglês, o que ela achava das traduções, ela respondeu:
— Ambas são boas, gostei das duas. Em inglês a história é mais picante, em chinês é mais romântica. Para você ter uma ideia da singularidade de cada uma: em chinês Dona Flor chama Vadinho de volta com o coração, em inglês ela o chama com aquilo que tem debaixo das calcinhas.

— E como se diz em chinês aquilo que ela tem debaixo das calcinhas?

Ting Li sorri, encabulada, pronuncia uma palavra, soou-me linda, um trino de pássaro, me esqueci, que pena.
Moscou, 1957.
Dá gosto ver em Moscou, no Parque Gorki, jovens casais a curtir Puskin e Iessenine, as cabeças encostadas, mãos entrelaçadas nas páginas de um livro.
Outra vez foi em Moscou, vai mais distante. Eram os tempos da abertura de Kruchev, no Teatro de Sátira davam uma peça sobre Maiakowski, a vida do poeta contada através de seus poemas. O texto da peça era composto somente com versos de Maiakowski e com as acusações feitas à sua poesia pelos críticos ideólogos — críticos e ideólogos defecavam insultos e catilinárias de duas latrinas situadas no alto do cenário, crítica latrinária, o asco. No palco quatro atores viviam quatro diferentes Maiakowski: o revolucionário, o amante, o surrealista, qual o quarto? Ou seriam apenas três?
Não falo nem entendo a língua russa, mas a força tão profunda da poesia mexeu com minhas tripas, comovi-me quase às lágrimas. Jamais esquecerei o momento em que Maiakowski suicida penetrou no palco para se dar à morte: entrou declamando o poema com que inculpou Iessenine por se ter suicidado. Arrepiado ouvi.
Jorge Amado, Nazim Hikmet (Turquia), Emi Siao (China), em Moscou, 1953.

Moscou, 1954.
Ele conta que após a derrota da Alemanha, os vinhos da adega do Goebbels, ministro da Propaganda e da Informação na Alemanha nazista, foram postas à venda:
A garrafeira de Goebbels, a maior da Europa, a mais rica em vinhos de classe, confiscados das reservas, das caves mais bem servidas dos países vinícolas ocupadas pelas tropas hitleristas, sobretudo da França. Guardados durante quase dez anos, transladados para anônimas garrafas, em todas o mesmo rótulo: vinho, sem qualquer outra indicação, foram postas à venda por preço mais barato do que o pago pelos vinhos da Moldávia ou da Geórgia.

A família do Ilya saiu em bando para comprar os vinhos. Ilya tinha uma gravura de Pablo Picasso, intitulada Le Crapaud.

Ao bater os olhos no quadro, sapo disforme, desintegrado, o homem do Pravda, teórico do realismo-socialista, estremece nas bases, desvia a vista da ignomínia: a isso os capitalistas chamam arte, exclama à beira da apoplexia. Como é possível que o camarada Eremburg pendure tais excrescências, podridão da burguesia, nas paredes de seu apartamento? E esse tal de Picasso se diz comunista, é o cúmulo.
Ilya interrompe-lhe a catilinária:
— O camarada sabe o título dessa gravura, o que ela representa?
— Não, não sei... O que sei...
— Representa o imperialismo norte-americano.
Humaniza-se o ideólogo, volta a contemplar o quadro, balança a cabeça, livre da ameaça de infarto, pratica a autocrítica:
— O imperialismo norte-americano? Agora entendo, Picasso é membro do Partido francês, não é? Camarada direito, que talento!
No capítulo “Moscou, 1954, complô”, ele conta que a escritora alemã e membro do júri do Prêmio (Stalin) Internacional da Paz, Anna Seghers, pediu encarecidamente aos outros colegas do júri para colocar o nome do Bertolt Brecht na lista dos indicados, pois ele estava sendo perseguido pelo pecê alemão e se ele ganhasse, o pecê o deixaria em paz.
Pablo Neruda, Jorge Amado e Anna Seghers em Paris, 1949
Fosse como fosse, Bertolt Brecht teve o prêmio, o pecê alemão arrepiou carreira, desistiu de incomodá-lo. Incomodar, verbo fraco, nem de longe dá ideia das misérias a que o sujeitariam, o poço de infâmias em que o afundariam.
Parece que o “jeitinho brasileiro” não é so brasileiro. Para mim, todos os prêmios Nobel, Oscar, etc. é tudo à base de panelinha. 
No capítulo "Moscou, 1951", ele fala do tradutor Fedor Keliin:
A Fedor Keliin muito deveram as literaturas de línguas portuguesa e espanhola, hispanista histórico traduziu e divulgou na URSS autores da península ibérica e da América Latina. Houve quem o criticasse por colocar métrica e rima nos poemas de versos livres de Neruda — em russo sou êmulo de Puskin, graceja Pablo —, a verdade é que o bom Keliin se bateu por nossas letras junto às editoras e às revistas literárias. Nos idos de trinta se batia por Eça de Queiroz sem obter êxito, as editoras fechavam as portas ao romancista português.

Capa do livro "Dona Flor e seus dois maridos" em russo, parece aqueles romance hot de banca dos anos 80. 

Falando em tradução, não é à toa que existe o provérbio “tradutor, traidor”. Não apenas na China, mas também na Rússia, as obras de Amado sofreram grandes modificações. Segundo Marina Darmaros descreve em seu artigo, havia cortes em trechos mais sensuais da obra e:

A qualidade das traduções na URSS, porém, é posta em jogo, por vezes, devido a uma quase literal “corrida tradutória” que se trava no país.
Conquanto estavam desobrigadas de royalties, de contratos e até da fidelidade ao original, cortando e adaptando quanto e a que propósito quisessem as obras estrangeiras, por isentas da Convenção de Berna, as editoras, ainda por cima, corriam com as traduções para serem as primeiras a publicar as obras. São Jorge dos Ilhéus, por exemplo, sai com um terço do volume original, traduzido do espanhol, e intitulado “Terra dos frutos de ouro”.
Para ler o artigo completo:
Darmaros, M. (2017). Por que ler Jorge Amado em russo: a cultura soviética revelada na tradução de Gabriela. Tradterm, 28, 223-248. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v28i0p223-248

Vou deixar um outro artigo sobre a recepção dos leitores às obras de Jorge Amado na URSS e Rússia:
Elena Beliakova. Jorge Amado e a literatura brasileira na Rússia. Universidade Federal de Tcherepovets, Rússia. https://doi.org/10.4000/amerika.4546
Beliakova também escreveu outro artigo: Jorge, bem amado pelos russos

No capítulo "Pequim, 1952", ele conta que foi à Ópera de Pequim e traduziu tudo errado para os amigos. Com esse tipo de amigo, quem precisa de inimigo, não é mesmo?
Logo na primeira noite de Pequim, deslumbrados, Rosa e Nicolás Guillén, Zélia e eu fomos levados ao teatro para assistir à representação de uma ópera milenar — tudo na China é milenar, o recente tem quinhentos anos. A ópera de Pequim assistida in locum em nada se parece com o espetáculo circense, em geral de alta qualidade, que percorre o mundo sob o mesmo nome. Na China é peça de teatro, texto poético, música estridente, o povo adora. Na sala repleta, os espectadores bebem chá, comem bananas, chupam tangerinas, mascam sementes de abóbora e amendoins enquanto os atores evoluem no palco. Para nós tudo é novidade e encanto.
Naqueles idos eu armava as piores molecagens aos meus amigos, algumas divertidas, outras de mau gosto, quem conviveu comigo foi vítima. Assim o fiz na noite da ópera de Pequim ao ver Nicolás e Rosa em desespero querendo saber o que se passava no palco.
Nicolás e Rosa ficaram na minha dependência, eu lhes repetia em espanhol o que Liu, nosso intérprete, meu e de Zélia, nos traduzia em francês, aliás não repetia nada do que Liu dizia — inventava outra história, e que história! Da mais baixa pornografia.
Decorridos alguns dias fomos recebidos, os quatro, na União dos Escritores Chineses, encontro com os maiorais da literatura e das artes, do teatro e do cinema, com os ideólogos do Partido. Falamos sobre Cuba e Brasil, Nicolás declamou em espanhol, tudo bem, gentilezas, elogios a granel, solidariedade revolucionária, para finalizar os companheiros chineses pediram que opinássemos sobre o que nos era dado ver na República Popular da China.
Nicolás, porém, atendendo à solicitação feita, reclamou um esclarecimento: não entendia por que punham em cena num teatro de Pequim ópera como aquela a que assistira, por que motivo? 
O ideólogo explicou que realmente o conteúdo da ópera era um tanto quanto feudal, o argumento situava-se em passado distante.
Não se tratava de feudalismo e sim de pornografia, replicou Guillén.
Pornografia? Não estou entendendo — estranhou o porta-voz do pecê chinês. Não consegui me conter, o fou-rire se me escapou e descabido ressoou no auditório da União de Escritores. Nicolás fuzilou-me com o olhar, buscou o que dizer, a indignação não lhe permitia encontrar as palavras de cólera para me insultar e condenar. Fitou-me, eu ria, Zélia ria, Rosa entendeu e riu seu riso sonoro das Antilhas, de repente aconteceu o imprevisível, Nicolás se juntou a nós na gargalhada, poucos sabiam rir com tanto gosto. Compadre, me disse entre frouxos de riso, nunca mais vou acreditar em ti.
Discretos, os chineses não fizeram perguntas, mas Rosa exigiu de Zélia o entrecho verdadeiro da ópera, queria saber tintim por tintim a história das guerras e dos amores do Imperador da China e da Favorita, fiel e devotada, casta.

No capítulo Moscou, 1953 - O pranto, ele fala de uma tentativa de assassinato de Stalin orquestrada pelos estadunidenses e médicos judeus:

Desço do avião que nos traz de Viena, a Zélia e a mim, são cinco horas da tarde, noite fechada em Moscou, inverno rude, estamos em janeiro de 1953, voltamos à União Soviética pela primeira vez desde o regresso ao Brasil. Alguns amigos nos esperam no aeroporto, entre eles Vera Kutekhkova, a animação em pessoa: vai nos servir de intérprete durante nossa estada.

Vera Kutekhkova, hispanista russa, membro da Academia de Ciências da URSS e seu esposo Lev Ospovat, hispanista russo, 1980.

Já éramos amigos por correspondência quando nos conhecemos pessoalmente em 1948. Responsável pelas literaturas de línguas espanhola e portuguesa no Instituto Gorki de Literatura Universal, Vera escrevera um ensaio sobre meu trabalho, publicado numa coleção de plaquetes editada pelo Pravda. Para Zélia e para mim, Vera e seu marido Lev, hispanista renomado, autor de livros sobre Lorca, Neruda e Diego Rivera, são nossa família soviética, não precisamos falar para nos entender.
Vera vem tomar conosco o café da manhã, no hotel. Estendo-lhe o exemplar do Pravda, peço-lhe tradução imediata da manchete que ocupa todo o alto da página, parece-me notícia importante. Vera lera o jornal antes de sair de casa, ainda assim, em vez de adiantar a informação, toma da gazeta, traduz. Trata-se do anúncio da descoberta de infame complô norte-americano para assassinar Stalin. Os imundos, os monstruosos agentes da conjura são os médicos, os médicos mais eminentes da URSS, que têm a responsabilidade de zelar pela saúde dos potentados do Kremlin — todos eles judeus, informa o Pravda.

De boca aberta, sem saber o que dizer, o que pensar, vejo Vera em minha frente. Parada, cerra as mãos, morde os lábios, o pranto escorre de seus olhos: não precisamos falar para entender.

 Moscou, 1948 - O incondicional: o português fanático pela ideologia.

Francisco Ferreira, português, trabalha na Rádio de Moscou ao lado de Satva Brandão nas emissões de língua portuguesa, alimenta com ideologia e notícias alvissareiras os camaradas do Brasil e de Portugal, das colônias salazaristas da África. Jovem comunista, participou das Brigadas Internacionais na Guerra da Espanha, com a derrota foi evacuado para a União Soviética. Casou-se com espanhola, é competente radialista, pessoa simpática, cordial e expansiva, capaz de solidariedade humana, como deu provas na dedicação com que se devotou à irmã e à filha de Prestes, Lígia e Anita, exiladas na capital soviética Membro exemplar do partido português, seu sectarismo não tem limites, é total.

Pela primeira vez na URSS, procuro me informar sobre a vida, os costumes, as benesses e as mazelas.

— Ladrões? — O bom Ferreira se exalta: — Na pátria do socialismo, o roubo não existe. Ladrão é coisa do passado, do czarismo.

Na véspera, em armazém do GUM tentaram roubar a bolsa de Zélia por duas vezes, Vera Kuteichkova nos havia recomendo: todo cuidado é pouco, os ladrões pululam. Desmascaro o informante: não seja mentiroso, Chico. Mas o patriota Ferreira não dá o braço a torcer:

—Existem ladrões, sim, não vou esconder, são sobras da guerra. Em compensação são os ladrões mais hábeis do planeta. Na semana passada tomei um ônibus na hora do almoço, ia lotado, só em casa me dei conta: tinham roubado tudo que eu levava em cima de mim, cortaram-me o sobretudo com lâmina de barbear, trabalho tão bem feito, nem senti. Ladrões tão capazes você não vai encontrar em nenhuma parte. — No acento luso o orgulho soviético.

Comentamos as diferenças nos hábitos da vida sexual no ocidente capitalista e no leste socialista. Nosso Ferreira é peremptório:

— Essas degenerescências não existem na União Soviética. — Refere-se ao hábito do adultério: — As mulheres soviéticas são fiéis aos maridos, a moral proletária é rígida, você sabe. Uma aventura, um deslize, infidelidade conjugal — coisas raríssimas, de se contar nos dedos.

As informações que já possuo, de escritores e de operários, faço amigos por onde passo, contradizem a afirmação do incondicional Chico Ferreira. Mais uma vez o desmascaro com bonomia, pois na falsa informação do comuna português não vejo outras intenções além do desejo de salvaguardar a imagem da URSS, para ele sagrada: para ele e para mim, para milhões e milhões na vastidão do mundo.

— Não seja cínico, Chico. As mulheres daqui dão sem que seja necessário se pedir, quem bem sabe é você que vive em ambiente de rádio propício, favorável à putaria. Quer que eu lhe cite exemplos?

 Já no capítulo “Cantão, 1952 - O que sabe melhor”, fala da cultura de comer cachorro:

Na ida para o restaurante Ilya exige que Ting Ling lhe esclareça uma curiosidade: qual a carne de cachorro a saber melhor, a dos criados em cativeiro nos canis dos restaurantes, engordados para o forno e o fogão, ou a dos vira-latas caçados nas ruas pelos pobres?

O hábito dos chineses de prepararem pratos com carne de cachorro — iguaria predileta nas casas de pasto de Cantão, só as serpentes gozam de fama igual — horrorizava Eremburg, que criava com mimos, em seu apartamento de Moscou, três schnawzers de estimação. Posso entender a repugnância de Ilya, até hoje não aceitei provar carne de cavalo.

— Quais os mais saborosos?

Ting Ling furta-se à resposta, busca escapatória, fala de outras excelências, teatro, bale, a flor-de-lótus, Ilya implacável insiste. Por fim a romancista, sem porta de saída, cansada de subterfúgios, baixa a voz, murmura entre dentes:

— Prefiro os vira-latas, a carne é mais saborosa.

Restaurante especialista em pato laqueado, os chineses refinados comem apenas a pele crestada, jogam a carne fora, Ilya come pele e carne, com apetite, nenhuma restrição se lhe escapa dos lábios enegrecidos pelo molho ferrugem. Nem a ele nem a mim: comemos pato e porco, boi e cabrito com gula e gosto, não comer cachorro, cavalo, serpente, apenas preconceito.

Achei que fosse um preconceito ocidental de que chinês come cachorro, então fui no Baidu, o google da China e descobri que comem mesmo, é uma cultura milenar. Eu que nem carne como fiquei chocada, mas ao mesmo tempo tenho a mesma opinião do Amado, que diferença faz comer porco ou cachorro?


O título do artigo é: Há um velho ditado que diz que "cachorro velho tem medo do solstício de verão". Por que os chineses comem carne de cachorro durante o solstício de verão? Qual é o significado?
O artigo mostra que tem havido muitas controvérsias nos últimos anos, especialmente o incidente do "Festival de Carne de Cachorro e Lichia" em Yulin, que gerou uma enorme polêmica interna. A mídia ocidental também aproveitou isso para aumentar a "polêmica" sobre os chineses comerem carne de cachorro.
 

De acordo com uma reportagem de 2016 do El País, 30 milhões de cães são consumidos em todo o mundo a cada ano, e quase metade deles está na China.
É claro que o costume de comer carne de cachorro não ocorre apenas em alguns lugares da China, mas também no nosso país vizinho, a Coreia do Sul.
No entanto, como um país com uma grande população, o costume chinês de comer carne de cachorro se intensificou. Ao longo dos anos, o debate sobre o consumo na China nunca parou. Algumas pessoas acham que comê-la é natural, enquanto outras acham que é uma prática desumana.
O costume de comer carne de cachorro na China tem uma história milenar. Especialmente quando chega o solstício de verão, essa carne é frequentemente mencionada, assim como o "Festival da Lichia e da Carne de Cachorro" em 18 de junho, o solstício de verão em Yulin. Há um antigo ditado popular que diz que "cachorros velhos têm medo do solstício de verão", o que reflete vividamente esse costume.Acredita-se que comer carne de cachorro durante o solstício de verão pode afastar espíritos malignos, nutrir o corpo, resistir a pragas, fortalecer o corpo e aumentar a resistência física. O corpo será capaz de resistir à invasão viral, resistir à invasão de ventos fortes e chuvas pesadas e reduzir o risco de doenças.
Durante as dinastias Qin e Han, o costume de comer carne de cachorro era predominante. Naquela época, todos, desde a família real até os ministros e o povo, gostavam de comê-la e se tornou quase o alimento mais comum na mesa. As pessoas  comiam assim como hoje comem carne de porco e frango. Era bastante popular.
Em certas épocas do passado, a carne de cachorro era muito mais barata do que outras carnes, como a de porco, e era mais fácil e conveniente de obter.
Por exemplo, os habitantes de Yulin têm o costume tradicional de comer carne de cachorro. Nas décadas de 1960 e 1970, o preço da carne de porco era relativamente alto e a oferta, muito limitada. Nem todos com dinheiro podiam comê-la, muito menos aqueles sem dinheiro.
Os coreanos também comem carne de cachorro, principalmente porque, no passado, era difícil para eles obter carne suficiente para repor energia. Como todos sabemos, a Península Coreana é uma região costeira. No passado, quando a produtividade era relativamente baixa, o transporte era inconveniente e a terra e os materiais eram escassos, era difícil para as pessoas obterem carne de alta qualidade em quantidade suficiente.

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Estas foram as impressões da Zélia e Jorge nas andanças pela URSS e China. No próximo post, se ainda existir mundo, vou trazer as fofocas de seus amigos comunistas que não valiam um centavo. No post seguinte ao próximo vou colocar a opinião do Jorge Amado sobre a Índia, só faltou ele ir para África do Sul para completar os países do BRICS.

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