sexta-feira, 25 de julho de 2025

anti-intelectualismo: o orgulho de ser ignorante

 


Anti-intellectualism in American Life é um livro-ensaio que explora vários aspectos do caráter americano. Foi escrito pelo historiador e professor da Universidade Columbia, Richard Hofstadter, em 1963, pela editora New York Alfred A. Knof, 434p. Ele ganhou duas vezes o Prêmio Pulitzer.

O livro é divido em 6 partes e 15 capítulos:
  1. A primeira parte é a introdução geral do tema.
  2. A segunda parte apresenta a influência da religião na cultura anti-intelectual. Estudar a Evolução, ciências no geral, história, filosofia, sociologia,etc. vão contra os preceitos bíblicos. Se a educação libertar, o pastor vai perder o rebanho e o que mais importa para ele, o dízimo e as ofertas. 
  3. A terceira parte mostra a influência política e de políticos. Eleitor bom é aquele que não sabe votar, que cai em qualquer fake news, não tem um mínimo de pensamento crítico.
  4. A quarta parte fala de business, os capitalistas milionários que visam apenas o lucro a qualquer custo, mas precisam que o proletariado seja ignorante o suficiente para não compreender seus direitos trabalhistas, muito menos as obras de Marx, vai que de repente eles tomam os meios de produção e dividem o lucro entre eles.
  5. A quinta parte fala sobre educação em uma democracia, é a mais importante, pois é a única capaz de combater tudo que foi citado nas partes anteriores. Portanto, é do interesse deles desmantelar as escolas, universidades e tratar os professores como inimigos.
  6. A sexta parte e última é a conclusão.

Se eu fosse resumi-lo em um parágrafo seria: o anti-intelectualismo é um projeto criado por homens ricos, brancos, fundamentalistas cristãos, conservadores, racistas, misóginos e homofóbicos para manter o povo na ignorância. Usam o aparato do estado para fins políticos, religiosos e de negócios (vide bilionários) defendendo unicamente seus próprios interesses. É isso! Pode subir os créditos:
Poderia terminar por aqui, mas preciso demonstrar o que ele pesquisou. Embora o livro tenha sido escrito há 61 anos, ele não está datado, pelo contrário, a situação só piorou como podemos observar agora em 2025.
Quando eu disse acima que era um projeto, se você ler as 900 páginas do “Projeto 2025” que a atual administração estadunidense adotou, verá que consta tudo o que mencionei acima. Neste artigo do The Guardian tem um resumão do que se trata.
Se esse projeto ficasse só por lá mesmo, não seria o problema para o resto do mundo, mas ele foi feito para exportação, eles têm seus representantes, os vassalos traidores e vendidos que vemos em nossa pátria.

Uma das justificativas para o subdesenvolvimento intelectual estadunidense vem da época da colonização, não tinham tempo para estudar, mas tinha para matar os povos nativos e roubar suas terras:
“Mas homens e mulheres vivendo em condições de pobreza e trabalho árduo, enfrentando os perigos de ataques indígenas, febres, e criados à base de uísque e brigas, não podiam pagar pela educação e cultura; e achavam mais fácil rejeitar o que não podiam ter do que admitir a falta disso como uma deficiência neles mesmos”.

O fundamentalismo religioso


O fundamentalismo religioso expressa um conjunto de crenças baseadas em uma interpretação literal de um manuscrito considerado sagrado, com uma exigência intransigente de submissão a uma doutrina. Esse tipo de fundamentalismo afirma uma religião enquanto rejeita outras como falsas. Muitas vezes, leva à intolerância, à exclusão e, em casos extremos, à violência.

O termo "fundamentalista" se aplica a fiéis de várias religiões, especialmente judeus ultraortodoxos, muçulmanos e cristãos tradicionalistas. Eles frequentemente se consideram os únicos guardiões de verdades antigas, alegando representar a essência de sua fé. No entanto, essa mentalidade deixa pouco espaço para diálogo ou colaboração. 

Antídoto: Estado laico. Já fiz o resumo do que isso significa, no post de pensamento crítico.

Para quem tiver interesse de como isso ocorre no Brasil, assista ao novo documentário da Petra Costa, Apocalipse nos trópicos, disponivel na Netflix.

Na segunda parte do livro, intitulada "The religion of the heart", o autor demonstra em três capítulos a interferência dos evangélicos (aquele povo da Bible Belt) na política estadunidense. 

Na cultura moderna, o movimento evangélico tem sido o mais poderoso portador desse tipo de anti intelectualismo religioso e de seu impulso antinomiano.

Toda vez que leio algo sobre fundamentalismo cristão, eu me sinto na obrigação de criar uma collage fanart para Nietzsche, pois eles são é exatamente o que foi dito em O Anticristo, ja fiz resumo deste livro aqui.

Clique na imagem para ampliá-la

A oração de um evangelista chamado Billy:

“Senhor, salva-nos do cristianismo descuidado, flácido, frágil, de joelhos fracos, de pele fina, maleável, plástico, sem espinha dorsal, efeminado e ossificado, de três quilates.” 

Sunday queria acabar com a ideia “de que ser cristão tira o homem do turbilhão da vida e das atividades mundanas e o torna uma figura covarde e efeminada”. Ele adotou um tom rooseveltiano em sua afirmação: “A guerra moral endurece o homem. A paz superficial torna o homem mole”; e resumiu seu temperamento ao confessar: “Não tenho interesse em um Deus que não castigue. 

Só acho que tanto Billy quanto Sunday eram sadomasoquistas e homofóbicos. Essa gente não sabe viver em paz e nem deixar os outros em paz. Mais abaixo vou deixar mais exemplos de misoginia e homofobia, porque este caras precisam provar a todo instante que é macho.

As pérolas que saem da boca destes seres:

Se tivermos que abrir mão da religião ou da educação, devemos abrir mão da educação.

Se eu tivesse um milhão de dólares, doaria 999.999 dólares para a igreja e 1 dólar para a educação.

John Washington Butler, o legislador batista primitivo do Tennessee que apresentou a lei contra o ensino da evolução naquele estado, o fez porque ouviu falar de uma jovem em sua própria comunidade que havia ido para uma universidade e retornado evolucionista.

Não existe outro livro que seja necessário para qualquer pessoa ler e, portanto, sou contra todas as bibliotecas.

 Mais abaixo tem um tópico sobre o papel da mulher na educação e o ódio masculino pelo conhecimento.

Vemos que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, escreveu as “escrituras sagradas” em benefício próprio. Autodenominou-se o representante de Deus na terra e em nome dele, se sente no direito de cometer todo tipo de atrocidade, pois tem o domínio da mulher, dos animais e da terra, endossando ainda mais o sistema patriarcal, porém disfarçado de religião.

A consequência é que "o homem continua sendo o centro da religião e Deus é seu auxílio, em vez de seu juiz e redentor".

A assombração do comunismo


No 1o capítulo, intitulado Anti-intellectualism in our Time, ele dá vários exemplos de políticos, incluindo presidentes que fazem questão de lutar contra o conhecimento, o pensamento crítico, a ciência e a educação. Um político de Michigan, chamado George Dondero, fazia cruzadas contra o comunismo nas escolas, também era contra o cubismo, expressionismo, dadaísmo, futurismo e outros movimentos de arte. Dizia que a arte dos -ismos era uma arma da Revolução Russa. 
Todos esses -ismos são de origem estrangeira e realmente não deveriam ter lugar na arte americana.
Exceto os -ismos de capitalismo, colonialismo, fundamentalismo, racismo, classismo, pois estes eles adoram. 
Não só políticos mal-intencionados, os pastores evangélicos também fazem cruzadas contra a intelectualidade e têm pavor dos -ismos, sobrou até para Freud:
No lugar da Bíblia, cultivamos a razão, o racionalismo, a cultura da mente, o culto à ciência, o poder de ação do governo, o freudianismo, o naturalismo, o humanismo, o behaviorismo, o positivismo, o materialismo e o idealismo. Este é o trabalho dos chamados intelectuais. Milhares desses "intelectuais" declararam publicamente que a moralidade é relativa — que não existe norma ou padrão absoluto.

Os conservadores dizem que os liberais sao comunistas quando eles apresentam alguma proposta que beneficiam o povo: 

Os liberais apoiam medidas que são, para todos os efeitos práticos, socialistas, e o socialismo nada mais é do que uma variante do comunismo, que, como todos sabem, é ateísmo.

As universidades, particularmente as mais conhecidas, eram constantemente apontadas como alvos por críticos de direita; mas, de acordo com um escritor do Freeman, parece ter havido apenas uma razão arbitrária para essa discriminação contra a Ivy League, visto que ele considerava que o comunismo está se espalhando em todas as nossas faculdades:

Nossas universidades são os campos de treinamento para os bárbaros do futuro, aqueles que, sob o disfarce de erudição, surgirão carregados de forcados de ignorância e cinismo, e apunhalarão e destruirão os resquícios da civilização humana. Não serão os camponeses do metrô que derrubarão os muros: eles apenas cumprirão as ordens de nossos irmãos eruditos... que apagarão a Liberdade individual dos registros do pensamento humano...

Se você enviar seu filho para as faculdades de hoje, criará o carrasco de amanhã. 

Business e anti-intelectualismo


Os homens de negócios não gostam das críticas feitas pelos intelectuais:

Chamberlain reclamou na Fortune que os romancistas americanos têm cometido constantes injustiças contra os empresários americanos. Em toda a ficção americana moderna, ele apontou, o empresário é quase sempre retratado como grosseiro, filisteu, corrupto, predador, dominador, reacionário e amoral.

Os valores dos negócios e do intelecto são vistos como eterna e inevitavelmente em desacordo: de um lado, há o homem centrado no dinheiro ou no poder, que se importa apenas com a grandeza e o dólar, com a ostentação e o otimismo vazio; do outro lado, há os homens de intelecto crítico, que desconfiam da civilização americana e se preocupam com a qualidade e os valores morais. O intelectual está bem ciente do elaborado aparato que o empresário usa para moldar nossa civilização aos seus propósitos e adaptá-la aos seus padrões.

As circunstâncias da era industrial nos Estados Unidos deram ao empresário uma posição tão central e poderosa entre os inimigos da mente e da cultura que outros antagonistas foram excluídos.

Os empresários trouxeram aos movimentos antiintelectuais mais força do que qualquer outra força na sociedade. "Este é essencialmente um país de negócios".

Durante pelo menos três quartos de século, os negócios foram estigmatizados pela maioria dos intelectuais americanos como o inimigo clássico do intelecto; os empresários.

O magnata do petróleo que não via valor em ter alunos "debruçados sobre línguas mortas e mofadas, aprendendo as histórias repugnantes dos deuses míticos e todas as coisas bárbaras do passado morto".


Masculinismo e misoginia: o odio às mulheres e a tudo que é considerado feminino ou afeminado


Como surgiu o culto ao homem bem-sucedido, conhecido também como homem pobre que paga pau para milionário, pois acha que um dia será como ele ou como disse Paulo Freire, o sonho do oprimido de ser opressor:
Queremos que as histórias dos nossos homens bem-sucedidos sejam expostas diante de nós, para que possamos conhecer os caminhos pelos quais eles se destacaram no meio do povo.
A ideia do homem bem-sucedido não era nova. Era um desdobramento histórico das pregações puritanas e da doutrina protestante da vocação.
Esse tipo de homem prefere defender o "Kiko dos foguetes" a defender pessoas de sua própria classe social, imagine chegar ao ponto de negar sua própria condição em beneficio dos ricos, torcer pelo sucesso deles enquanto está na merda. Os ricos ficam felizes com gente assim, pois sabem que não irão para guilhotina tão cedo.

Homem de verdade não pode ser inteligente, estudar, ler ou tornar-se escritor. isso é coisa de gay. Homem que é homem não usa o intelecto, usa a força. Ele precisa performar masculinidade o tempo inteiro, pois não pode deixar escapar nada considerado afeminado. Precisa estar vigilante, pois a masculinidade é tóxica e frágil, melhor juntar às forças armadas a ter que ir à universidade “ser doutrinado”.
Como li no Kobo, procurei na busca e a palavra affeminate apareceu doze vezes, sem falar em outras como: homossexual, fruity, assexuado, terceiro sexo, etc. Nunca tinha visto tanto vocabulário relacionado com a falta de masculinidade, estou grifando estas partes em rosa, assim como deixei o texto em rosa para ficar mais feminino ainda:
Eles chamavam, em sua cruzada contra os humanistas literários, de "literatura de fadas". Michael Gold disse certa vez a Sinclair Lewis que escritores desse tipo nutriam uma "inveja louca" por terem sido "privados de experiências masculinas". No curso de uma famosa vingança literária contra Thornton Wilder, Gold acusou o romancista de propagar uma "religião pastel, pastiche, diletante, sem o verdadeiro sangue e fogo neuróticos, um devaneio de figuras homossexuais em trajes graciosos movendo-se arcaicamente entre os lírios".

Um escritor ficou surpreso quando um líder do partido se referiu à sua poesia e contos como seu "hobby" para atividades extracurriculares — uma ilustração reveladora da concepção partidária de cartas como fundamentalmente pouco sérias. O pior de tudo era a falta de masculinidade em escritores que não lidavam com as duras realidades da luta de classes.
Pode-se afirmar que os intelectuais são pretensiosos, convencidos, efeminados e esnobes; e muito provavelmente imorais, perigosos e subversivos.

O irritadiço senador Ingalls, do Kansas, furioso com a falta de lealdade partidária deles, certa vez os denunciou como "o terceiro sexo" — "efeminados sem serem masculinos ou femininos; incapazes de procriar ou gerar; sem fecundidade nem virilidade; dotados do desprezo dos homens e do escárnio das mulheres, e condenados à esterilidade, ao isolamento e à extinção".

Sua cultura e maneiras meticulosas foram tomadas como evidência de que esses "cavalheiros piegas e bonzinhos" que "tomam chá frio" eram deficientes em masculinidade. Em algumas ocasiões, foram denunciados como "hermafroditas políticos".

Invocando um preconceito bem estabelecido do homem americano, os políticos argumentaram que a cultura é impraticável e os homens cultos são ineficazes, que a cultura é feminina e os homens cultos tendem a ser efeminados. 
A dessexificação, até mesmo a desumanização, foi um dos temas centrais de The Bostonianos. Assim como Bushnell, James temia que o mundo masculino fosse destruído pela agressividade perversa das mulheres e dos princípios femininos.

A associação de intelectualidade e estilo com efeminação que observei em relação aos reformadores da Era Dourada, reapareceu na campanha de 1952.

Os políticos intelectuais sofreram todo tipo de bullying pelos colegas e pela mídia: 

O New York Daily News chegou a chamá-lo de Adelaide e o acusou de "trinar" seus discursos com uma voz "frutada". Sua voz e dicção foram convertidas em objetos de suspeita — "palavras de xícara de chá", dizia-se, reminiscentes de "uma solteirona refinada que nunca consegue esquecer que tirou nota A em dicção na Escola de Acabamento da Srta. Smith".

Ser ativo na política era assunto de homem, enquanto estar envolvido em movimentos de reforma (pelo menos nos Estados Unidos) significava associação constante com mulheres agressivas, reformistas e moralistas — veja o caso dos abolicionistas. A ideia masculina comum, tão frequentemente ouvida no debate sobre o sufrágio feminino, era que as mulheres se sujariam e se dessexualizariam se entrassem no inevitavelmente sujo mundo masculino da atividade política.  
Diz-se que o (Presidente) Wilson trouxe à presidência o temperamento do acadêmico, com seus defeitos e virtudes. Ele acreditava em pequenos negócios, economia competitiva, colonialismo, supremacia anglo-saxônica e branca, e em um sufrágio restrito aos homens, muito depois de tais crenças se tornarem objetos de análises críticas mordazes. A partir do momento em que assumiu a presidência de Princeton, em 1902, ele deixou de tentar se manter atualizado com os desenvolvimentos no mundo das ideias. Em 1916, ele confessou francamente: “Não leio um livro sério há quatorze anos”.

Nos dias de hoje, há várias pesquisas afirmando que homens estudam menos, lêem menos, etc. Vou deixar aqui uns vídeos feito por homens falando sobre o assunto e tentando convencer os jovens a lerem:

Jared Henderson, How to Start Reading Again

Lawrence Debbs, Why Men Don't Read Books Anymore

John A. Douglas, No books for men? Nah, mate

Pedagogia é coisa de mulher 

No "livro dos disparates", na lenda da criação, Eva viu o quão desprovido de inteligência Adão era que preferiu desobedecer Deus e dar o fruto do conhecimento para ele, porque conviver com gente burra é literalmente padecer no paraíso. Portanto, ela é culpada por trazer o conhecimento aos homens, logo, os religiosos precisam combater a ciência e o conhecimento para fazer a vontade de um suposto deus.

Nos EUA, a educação é feminina porque a mulher aceita ganhar pouco, ganha menos que um lixeiro, por isso quando um homem que está na área de ensino automaticamente é chamado de gay:

Nos Estados Unidos, onde o ensino foi identificado como uma profissão feminina, ele não oferece aos homens a estatura de um papel masculino plenamente legítimo. A convicção masculina americana de que educação e cultura são preocupações femininas é, portanto, confirmada, e sem dúvida parcialmente moldada pelas experiências dos meninos na escola. Muitas vezes, não há modelos ou ídolos masculinos suficientes entre seus professores, cujo desempenho transmita a sensação de que o mundo da mente é legitimamente masculino, que possam lhes dar exemplos masculinos de investigação intelectual ou vida cultural.

Os Estados Unidos são o único país do mundo ocidentalizado que colocou sua educação elementar quase exclusivamente nas mãos de mulheres, e sua educação secundária, em grande parte. Em 1953, este país era praticamente o único entre as nações do mundo na feminização de seu ensino: as mulheres constituíam 93% de seus professores primários e 60% de seus professores secundários. Apenas um país na Europa Ocidental (a Itália, com 52%) empregava mulheres para mais da metade de seu corpo docente do ensino médio.

Opositores das professoras ainda eram ouvidos em muitas comunidades, mas frequentemente eram facilmente silenciados quando se apontava que as professoras poderiam receber um terço ou metade do salário dos homens. Eis uma resposta à grande busca americana por educar a todos, mas de forma barata.

Um dia, o público descobre que uma cidade em Michigan paga a seus professores US$ 400 por ano a menos do que seus coletores de lixo.

Os meninos crescem pensando nos professores homens como algo efeminado e os tratam com uma curiosa mistura de deferência gentil.

De fato, o tipo intelectual de educação pode ser significativo apenas para uma minoria: "A verdade é que, na grande maioria dos seres humanos, o interesse distintamente intelectual não é dominante. Eles têm o chamado impulso e disposição práticos." Por essa razão, tantos jovens abandonam a escola assim que aprendem os rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo.

É muito fácil culpar o resto do mundo pelas mazelas causadas por estes tipos de homens, para eles que tudo é pecado e todo mundo é gay e comunista.

Outros videos interessantes:

O que é um doutor ? | Combatendo o anti-intelectualismo

Pirulla, O mundo assombrado pelos demônios


terça-feira, 8 de julho de 2025

O método autodidático de aprendizagem do francês do tradutor de Zélia Gattai e Jorge Amado

 Zélia Gattai e Jorge Amado relataram a história deste professor / tradutor nos seguintes livros:

  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.


É sobre um professor mongol que aprendeu francês sozinho, nos anos 50. Os recursos eram bem limitados, mas ele aproveitou o que estava disponível na biblioteca e no rádio

Relato de Jorge Amado: 

“Sozinho, sem professor, sem escola, sem Aliança Francesa sem curso de qualquer espécie, aprendera a língua que o seduzira ouvindo as transmissões em francês da rádio soviética. Descobriu na Biblioteca Nacional uma gramática francesa — de tanto a estudar ele a sabia inteira, de memória — e três livros em francês dois romances de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, o terceiro era um tratado de vinhos e queijos. Ele os lera e relera dezenas de vezes, os decorara, conhecia na ponta da língua d'Artagnan”.

O relato da Zélia está disponível no fim desta postagem, pois ela conta com mais detalhes a vida deste professor que achei ser uma pessoa incrivel. 

Hoje está bem mais fácil aprender um idioma sozinho, se você não tem condições financeiras para comprar um livro novo, vai no sebo que é mais barato, na biblioteca ou tenta achar materiais disponíveis na internet. Estas dicas servem para o aprendizado de qualquer idioma. Eis aqui a receita do que o tradutor utilizou:

  • Tempo e disposição para se dedicar.
  • Um livro de gramática completa, disponível na biblioteca.
  • Dois calhamaços de obras literárias de Alexandre Dumas: Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo
  • Uma revista especializada em um assunto.
  • Uma rádio com a programação em francês para escutar os nativos falando.

Meu adendo para estudar nos dias atuais:

Planejamento: Você precisa planejar um horário para estudos e torná-lo em um hábito. Sem organização e comprometimento fica difícil conquistar qualquer coisa nesta vida. Não existe milagre, existe dedicação.

Reserve uma hora, 3x por semana (ou mais se você tiver mais tempo) para estudar gramática + 30 min por dia para ler um livro. Nos dias em que você não estiver estudando gramática, escute um podcast ou assista a um vídeo no Youtube, um filme ou decore uma música no idioma que você está aprendendo.

Livros de gramática: Faça suas anotações de gramática e todos os exercícios em um caderno à parte, pois escrever ajuda a memorizar. Terminou o livro? Recomece quantas vezes forem necessárias. Se o seu livro ou coleção dividida por níveis cobre toda a gramática, você não precisa de outro. Para o estudo do francês, eu recomendo os livros da editora CLE International, Grammaire progressive du français. Se você fizer todos os exercícios, do nível básico ao avançado, você já aprendeu tudo o que um nativo também aprendeu na escola.

Para estudar inglês de forma autodidata, recomendo a coleção English for Everyone, da DK, do nível básico ao avançado. Tem o livro de gramática, o livro de exercícios, os exercícios corrigidos no final e o app de áudio para baixar.

Use a técnica de repetição espaçada que nada mais é que uma revisão do que você estudou. A primeira revisão 24h depois, em seguida uma semana depois e um mês depois para reter as informações a longo prazo. Não adianta nada fazer um capitulo por dia e acabar o livro em um mês, você precisa recapitular de tempos em tempos para o seu cérebro guardar. 

Se tiver dúvidas gramaticais, o que mais tem é professor de idiomas ensinando no Youtube, veja qual deles tem um método que combine com seu jeito de aprender. Não precisa seguir todos os canais de aprendizagem do idioma. Seja específico no motor de busca, se sua dúvida for sobre “subjonctif” por exemplo, escreva isso na busca e só vai aparecer vídeos tratando desse tema.  As pessoas ficam perdidas com a falta, mas também com o excesso de informação, por isso vá direto ao ponto e evite distrações. Eu gosto muito do canal Apprenez français avec Vincent, lá tem tudo e mais um pouco. 

Estes livros, antigamente vinham com um cd, hoje tem um aplicativo de áudio para fazer download. Repita em voz alta esses áudios usando o método japonês ondoku (repetição em voz alta) e o método shadowing (você vai repetindo e imitando o jeito de um nativo enquanto ele fala).

No ondoku, você repete o áudio com o texto 5x, depois leia em voz alta o texto sem o áudio 15x, em seguida repita o áudio sem o texto 5x e por último shadowing (repete junto com o áudio) 5x. Grave este processo, porque escutando a gravação, você percebe se está cometendo algum erro.

Literatura: Você só vai entender os calhamaços quando tiver uma base sólida de gramática e vocabulário, comece com livros infantis para não desanimar e depois, com o tempo, invista em livros grandes. Porém, se você é como o tradutor do Jorge Amado, não tem medo de calhamaço, não gosta de pequenas doses homeopáticas e já quer cair de boca no jeito mais difícil, mas não impossível, fica a seu critério. Ele viveu em tempos de guerra, não ia ser um calhamaço do Dumas que iria assustá-lo. Ele também não tinha internet, nem redes sociais, ou seja, quem era organizado e gostava de estudar, não tinha o tempo roubado com futilidades e distrações.

O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas tem quase 2000 páginas. É um livro que já está em domínio público e pode ser baixado legalmente e gratuitamente neste site da TV5 Monde. Este site têm muitos livros, todos em francês, escolha um que combina com seu gosto pessoal, não tem nem como arranjar desculpas de que “pobre não tem acesso aos clássicos da literatura francesa”.

Para quem estuda inglês, tem o site do Project Gutenberg, com mais de 75.000 livros gratuitos.  

Aplicativos gratuitos de audiobooks: Librivox, pessoas voluntárias lêem os livros que estão em domínio público, lá tem O Conde de Montecristo, você pode ler o livro e ouvir o audiobook ao mesmo tempo, se quiser, pode utilizar os métodos ondoku e shadowing.

ReadEra https://readera.org/ é um aplicativo gratuito, não precisa de inscrição e não tem publicidade. Você coloca seu livro eletrônico em qualquer formato: .epub .pdf, .doc, .mobi, entre outros e além de lê-lo no aplicativo, tem a opção de áudio também. A voz é robótica, mas a pronúncia é correta. 

Eu prefiro o Librivox que é lido por pessoas, mas o livro não vem acoplado, você tem que ler em papel ou no seu e-reader. Já o ReadEra, você coloca o arquivo do livro e aciona o áudio, ou seja, lê e escuta no mesmo lugar, porém com a voz mecânica.

Não tenha pressa, não é uma competição, você precisa de tempo para processar tudo, uma página por vez, só depois de entender o contexto, as palavras até então desconhecidas, você vira a página. A primeira leitura é de descobrimento, você pode ler em voz alta ou shadowing, isso leva tempo, uma página por dia no começo já é o suficiente. A segunda leitura você já não tem dúvidas de gramática nem de pronúncia, você vai focar na literatura, no enredo, nos personagens, etc. Faça um resumo de cada capítulo para treinar a escrita, escreva as passagens que você gostou e no fim, faça um resumo do livro.

Revista especializada: No site Internet Archive tem livros, filmes, músicas, jogos, etc. É um compilado de arquivos de tudo que foi criado digitalmente. Lá tem muitas revistas em vários idiomas, procure uma com um assunto que te interessa, por exemplo: cinema, música, informática, culinária, atualidades, etc. Leia um artigo, faça um resumo, fale em voz alta sobre o que você acabou de ler, como se estivesse explicando para alguém.

Para escutar: Hoje em dia é muito fácil ter acesso a áudios, no Spotify tem músicas, podcasts, audiobooks em quase todos os idiomas. No youtube tem vídeos com vlogs, vídeo-ensaios, receitas, moda, atualidades, fitness, aulas, seminários, etc. Escolha um tema que te apetece.

Relato da Zélia Gattai, no capítulo “O Professor de Ulan-Bator, Mongólia”

Professor de escola primária num bairro distante, radioamador nas horas vagas, uns 35 anos de idade, o tradutor que nos traziam cumprimentou-nos com gentileza: o rosto impassível, as mãos trêmulas.

Soubemos depois a sua história: aprendera o francês sem professor, sozinho. Costumava ouvir as emissões em francês da Rádio Moscou, apreciava as músicas francesas, achava aquela língua lindíssima e resolvera dominá-la. Recorreu à Biblioteca Nacional, encontrou pouca coisa em francês, quase nada, o suficiente, no entanto, para satisfazer a sua obstinação. O fundamental, a gramática francesa, estava lá, além de um livro sobre pecuária e um romance: O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Estudou e aprendeu a gramática; leu e releu o livro sobre pecuária, ficou entendido em bovinos, caprinos e ovinos; adorou O Conde de Monte Cristo, leu e releu vezes sem fim o romance de Dumas; passou a entender o que transmitiam os programas de francês, da Rádio Moscou mas, hélas, jamais falara a língua, nem uma única palavra. Falar com quem?

O pessoal da biblioteca dera a pista ao serviço de informações do governo.

Foram pescá-lo quando lecionava na pequena escola primária. Não havia tempo para muitas explicações: "Interrompa a aula, o camarada vai ter que nos acompanhar." Levavam um terno de roupa mais ou menos de suas medidas -segundo Jorge, o governo mongol possuía um estoque de roupas ocidentais para eventuais necessidades, como essa, por exemplo. "Mude a roupa e venha conosco, pois o camarada vai servir de intérprete de francês a Jorge Amado, escritor brasileiro, Prêmio Internacional Stalin." O nome de Jorge Amado não lhe recordava grande coisa, tinha uma vaga lembrança de tê-lo ouvido numa emissão e não chegava a impressioná-lo, mas o título de Prêmio Internacional Stalin buliu com ele. "Iremos daqui para o Palácio do Governo, onde o Primeiro-ministro nos espera." Primeiro-ministro? Agora, sim, ele estremecera. Ao ver o intérprete enfatiotado, pronto para segui-los, os emissários, dando por cumprida a tão difícil tarefa, respiraram aliviados: "Ufa!", disseram. "Ufa!", disse eu, ao vê-lo chegar: a pátria estava salva.

No gabinete do Primeiro-ministro, começou falando lentamente, medindo cada frase, cada palavra, refletindo antes de proferi-las… Nós tratamos de deixá-lo à vontade, e na visita ao Parlamento, logo em seguida, traduzindo os discursos, ele já tremia menos; aos poucos foi ganhando terreno e confiança, revelou-se um excelente tradutor.

Em tão poucos dias nos tornáramos íntimos do professor primário, do homem que, para nos servir, fizera das tripas coração, falara francês pela primeira vez na vida. Nos abraços da despedida, estávamos todos comovidos. Entre a emoção e o encabulamento, nosso tradutor pediu a Jorge que lhe fizesse assinaturas das revistas editadas em francês, na União Soviética. Não tenho dúvidas de que das coisas que mais prazer deu a Jorge foi mandar para nosso amigo mongol quantidade de livros editados em francês na União Soviética, fazer assinaturas em seu nome, por três anos, das revistas: Littérature Soviétique, Problèmes du Sócialisme e Temps Nouveaux.

Naquele mesmo ano de 1952, no mês de dezembro, Jorge voltou à Europa e encontrou-se com o camarada Ministro numa reunião do Conselho Mundial da Paz, em Viena. Perguntou-lhe por nosso amigo, tradutor de francês. Teria voltado a lecionar na sua escolinha? O amigo Ministro — em breve ele viria a ser Primeiro-ministro da Mongólia — respondera com uma gostosa gargalhada: "Professor primário? Está louco? Uma preciosidade dessas não se joga fora… Ele é hoje chefe do departamento de francês do Ministério do Exterior. Resultado de tua visita."