terça-feira, 8 de julho de 2025

O método autodidático de aprendizagem do francês do tradutor de Zélia Gattai e Jorge Amado

 Zélia Gattai e Jorge Amado relataram a história deste professor / tradutor nos seguintes livros:

  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.


É sobre um professor mongol que aprendeu francês sozinho, nos anos 50. Os recursos eram bem limitados, mas ele aproveitou o que estava disponível na biblioteca e no rádio

Relato de Jorge Amado: 

“Sozinho, sem professor, sem escola, sem Aliança Francesa sem curso de qualquer espécie, aprendera a língua que o seduzira ouvindo as transmissões em francês da rádio soviética. Descobriu na Biblioteca Nacional uma gramática francesa — de tanto a estudar ele a sabia inteira, de memória — e três livros em francês dois romances de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, o terceiro era um tratado de vinhos e queijos. Ele os lera e relera dezenas de vezes, os decorara, conhecia na ponta da língua d'Artagnan”.

O relato da Zélia está disponível no fim desta postagem, pois ela conta com mais detalhes a vida deste professor que achei ser uma pessoa incrivel. 

Hoje está bem mais fácil aprender um idioma sozinho, se você não tem condições financeiras para comprar um livro novo, vai no sebo que é mais barato, na biblioteca ou tenta achar materiais disponíveis na internet. Estas dicas servem para o aprendizado de qualquer idioma. Eis aqui a receita do que o tradutor utilizou:

  • Tempo e disposição para se dedicar.
  • Um livro de gramática completa, disponível na biblioteca.
  • Dois calhamaços de obras literárias de Alexandre Dumas: Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo
  • Uma revista especializada em um assunto.
  • Uma rádio com a programação em francês para escutar os nativos falando.

Meu adendo para estudar nos dias atuais:

Planejamento: Você precisa planejar um horário para estudos e torná-lo em um hábito. Sem organização e comprometimento fica difícil conquistar qualquer coisa nesta vida. Não existe milagre, existe dedicação.

Reserve uma hora, 3x por semana (ou mais se você tiver mais tempo) para estudar gramática + 30 min por dia para ler um livro. Nos dias em que você não estiver estudando gramática, escute um podcast ou assista a um vídeo no Youtube, um filme ou decore uma música no idioma que você está aprendendo.

Livros de gramática: Faça suas anotações de gramática e todos os exercícios em um caderno à parte, pois escrever ajuda a memorizar. Terminou o livro? Recomece quantas vezes forem necessárias. Se o seu livro ou coleção dividida por níveis cobre toda a gramática, você não precisa de outro. Para o estudo do francês, eu recomendo os livros da editora CLE International, Grammaire progressive du français. Se você fizer todos os exercícios, do nível básico ao avançado, você já aprendeu tudo o que um nativo também aprendeu na escola.

Para estudar inglês de forma autodidata, recomendo a coleção English for Everyone, da DK, do nível básico ao avançado. Tem o livro de gramática, o livro de exercícios, os exercícios corrigidos no final e o app de áudio para baixar.

Use a técnica de repetição espaçada que nada mais é que uma revisão do que você estudou. A primeira revisão 24h depois, em seguida uma semana depois e um mês depois para reter as informações a longo prazo. Não adianta nada fazer um capitulo por dia e acabar o livro em um mês, você precisa recapitular de tempos em tempos para o seu cérebro guardar. 

Se tiver dúvidas gramaticais, o que mais tem é professor de idiomas ensinando no Youtube, veja qual deles tem um método que combine com seu jeito de aprender. Não precisa seguir todos os canais de aprendizagem do idioma. Seja específico no motor de busca, se sua dúvida for sobre “subjonctif” por exemplo, escreva isso na busca e só vai aparecer vídeos tratando desse tema.  As pessoas ficam perdidas com a falta, mas também com o excesso de informação, por isso vá direto ao ponto e evite distrações. Eu gosto muito do canal Apprenez français avec Vincent, lá tem tudo e mais um pouco. 

Estes livros, antigamente vinham com um cd, hoje tem um aplicativo de áudio para fazer download. Repita em voz alta esses áudios usando o método japonês ondoku (repetição em voz alta) e o método shadowing (você vai repetindo e imitando o jeito de um nativo enquanto ele fala).

No ondoku, você repete o áudio com o texto 5x, depois leia em voz alta o texto sem o áudio 15x, em seguida repita o áudio sem o texto 5x e por último shadowing (repete junto com o áudio) 5x. Grave este processo, porque escutando a gravação, você percebe se está cometendo algum erro.

Literatura: Você só vai entender os calhamaços quando tiver uma base sólida de gramática e vocabulário, comece com livros infantis para não desanimar e depois, com o tempo, invista em livros grandes. Porém, se você é como o tradutor do Jorge Amado, não tem medo de calhamaço, não gosta de pequenas doses homeopáticas e já quer cair de boca no jeito mais difícil, mas não impossível, fica a seu critério. Ele viveu em tempos de guerra, não ia ser um calhamaço do Dumas que iria assustá-lo. Ele também não tinha internet, nem redes sociais, ou seja, quem era organizado e gostava de estudar, não tinha o tempo roubado com futilidades e distrações.

O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas tem quase 2000 páginas. É um livro que já está em domínio público e pode ser baixado legalmente e gratuitamente neste site da TV5 Monde. Este site têm muitos livros, todos em francês, escolha um que combina com seu gosto pessoal, não tem nem como arranjar desculpas de que “pobre não tem acesso aos clássicos da literatura francesa”.

Para quem estuda inglês, tem o site do Project Gutenberg, com mais de 75.000 livros gratuitos.  

Aplicativos gratuitos de audiobooks: Librivox, pessoas voluntárias lêem os livros que estão em domínio público, lá tem O Conde de Montecristo, você pode ler o livro e ouvir o audiobook ao mesmo tempo, se quiser, pode utilizar os métodos ondoku e shadowing.

ReadEra https://readera.org/ é um aplicativo gratuito, não precisa de inscrição e não tem publicidade. Você coloca seu livro eletrônico em qualquer formato: .epub .pdf, .doc, .mobi, entre outros e além de lê-lo no aplicativo, tem a opção de áudio também. A voz é robótica, mas a pronúncia é correta. 

Eu prefiro o Librivox que é lido por pessoas, mas o livro não vem acoplado, você tem que ler em papel ou no seu e-reader. Já o ReadEra, você coloca o arquivo do livro e aciona o áudio, ou seja, lê e escuta no mesmo lugar, porém com a voz mecânica.

Não tenha pressa, não é uma competição, você precisa de tempo para processar tudo, uma página por vez, só depois de entender o contexto, as palavras até então desconhecidas, você vira a página. A primeira leitura é de descobrimento, você pode ler em voz alta ou shadowing, isso leva tempo, uma página por dia no começo já é o suficiente. A segunda leitura você já não tem dúvidas de gramática nem de pronúncia, você vai focar na literatura, no enredo, nos personagens, etc. Faça um resumo de cada capítulo para treinar a escrita, escreva as passagens que você gostou e no fim, faça um resumo do livro.

Revista especializada: No site Internet Archive tem livros, filmes, músicas, jogos, etc. É um compilado de arquivos de tudo que foi criado digitalmente. Lá tem muitas revistas em vários idiomas, procure uma com um assunto que te interessa, por exemplo: cinema, música, informática, culinária, atualidades, etc. Leia um artigo, faça um resumo, fale em voz alta sobre o que você acabou de ler, como se estivesse explicando para alguém.

Para escutar: Hoje em dia é muito fácil ter acesso a áudios, no Spotify tem músicas, podcasts, audiobooks em quase todos os idiomas. No youtube tem vídeos com vlogs, vídeo-ensaios, receitas, moda, atualidades, fitness, aulas, seminários, etc. Escolha um tema que te apetece.

Relato da Zélia Gattai, no capítulo “O Professor de Ulan-Bator, Mongólia”

Professor de escola primária num bairro distante, radioamador nas horas vagas, uns 35 anos de idade, o tradutor que nos traziam cumprimentou-nos com gentileza: o rosto impassível, as mãos trêmulas.

Soubemos depois a sua história: aprendera o francês sem professor, sozinho. Costumava ouvir as emissões em francês da Rádio Moscou, apreciava as músicas francesas, achava aquela língua lindíssima e resolvera dominá-la. Recorreu à Biblioteca Nacional, encontrou pouca coisa em francês, quase nada, o suficiente, no entanto, para satisfazer a sua obstinação. O fundamental, a gramática francesa, estava lá, além de um livro sobre pecuária e um romance: O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Estudou e aprendeu a gramática; leu e releu o livro sobre pecuária, ficou entendido em bovinos, caprinos e ovinos; adorou O Conde de Monte Cristo, leu e releu vezes sem fim o romance de Dumas; passou a entender o que transmitiam os programas de francês, da Rádio Moscou mas, hélas, jamais falara a língua, nem uma única palavra. Falar com quem?

O pessoal da biblioteca dera a pista ao serviço de informações do governo.

Foram pescá-lo quando lecionava na pequena escola primária. Não havia tempo para muitas explicações: "Interrompa a aula, o camarada vai ter que nos acompanhar." Levavam um terno de roupa mais ou menos de suas medidas -segundo Jorge, o governo mongol possuía um estoque de roupas ocidentais para eventuais necessidades, como essa, por exemplo. "Mude a roupa e venha conosco, pois o camarada vai servir de intérprete de francês a Jorge Amado, escritor brasileiro, Prêmio Internacional Stalin." O nome de Jorge Amado não lhe recordava grande coisa, tinha uma vaga lembrança de tê-lo ouvido numa emissão e não chegava a impressioná-lo, mas o título de Prêmio Internacional Stalin buliu com ele. "Iremos daqui para o Palácio do Governo, onde o Primeiro-ministro nos espera." Primeiro-ministro? Agora, sim, ele estremecera. Ao ver o intérprete enfatiotado, pronto para segui-los, os emissários, dando por cumprida a tão difícil tarefa, respiraram aliviados: "Ufa!", disseram. "Ufa!", disse eu, ao vê-lo chegar: a pátria estava salva.

No gabinete do Primeiro-ministro, começou falando lentamente, medindo cada frase, cada palavra, refletindo antes de proferi-las… Nós tratamos de deixá-lo à vontade, e na visita ao Parlamento, logo em seguida, traduzindo os discursos, ele já tremia menos; aos poucos foi ganhando terreno e confiança, revelou-se um excelente tradutor.

Em tão poucos dias nos tornáramos íntimos do professor primário, do homem que, para nos servir, fizera das tripas coração, falara francês pela primeira vez na vida. Nos abraços da despedida, estávamos todos comovidos. Entre a emoção e o encabulamento, nosso tradutor pediu a Jorge que lhe fizesse assinaturas das revistas editadas em francês, na União Soviética. Não tenho dúvidas de que das coisas que mais prazer deu a Jorge foi mandar para nosso amigo mongol quantidade de livros editados em francês na União Soviética, fazer assinaturas em seu nome, por três anos, das revistas: Littérature Soviétique, Problèmes du Sócialisme e Temps Nouveaux.

Naquele mesmo ano de 1952, no mês de dezembro, Jorge voltou à Europa e encontrou-se com o camarada Ministro numa reunião do Conselho Mundial da Paz, em Viena. Perguntou-lhe por nosso amigo, tradutor de francês. Teria voltado a lecionar na sua escolinha? O amigo Ministro — em breve ele viria a ser Primeiro-ministro da Mongólia — respondera com uma gostosa gargalhada: "Professor primário? Está louco? Uma preciosidade dessas não se joga fora… Ele é hoje chefe do departamento de francês do Ministério do Exterior. Resultado de tua visita."