sábado, 26 de março de 2016

Leitura: O Despertar, de Kate Chopin

Ja aconteceu de você nao escolher o livro, mas ele escolher você? Foi o que aconteceu com esse da Kate Chopin. Estava eu à toa na vida e resolvi fazer o quiz do Buzzfeed: Qual autora classica você é? Eis o resultado:

Apos o resultado do teste, resolvi procurar saber mais sobre a autora e descobri o livro "O Despertar" que foi um escândalo na época, foi até boicotada por causa disso. O livro ja esta em dominio publico e pode ser baixado gratuitamente aqui (em inglês). E a surpresa nao para por ai, ele foi o escolhido do mês de março no Clube dos Classicos Vivos. Ou seja, no excuses para nao lê-lo, o universo conspirou a meu favor. 
Quem sou eu para ser Kate Chopin, né BuzzFeed? Seria uma honra, pois se eu fosse boa na escrita, também preferiria tocar na ferida da sociedade e causar escândalo, mas nao passo de uma simples leitora e prefiro continuar sendo, afinal o que seria dos escritores sem os leitores, nao é mesmo?

Kate Chopin é americana de origem crioula francesa, leia a definiçao do que isso significa, pois é importante para entender os personagens do livro e para se situar geograficamente e culturalmente. 
Kate também é uma das precursoras da literatura feminista do século XX nos EUA. Apos sofrer uma crise depressiva, o médico aconselhou-a a escrever como terapia, mas ela nunca conseguiu viver financeiramente da escrita e traduçao, paralelamente trabalhava com plantaçao de algodao. Foi casada, teve 6 filhos e morreu aos 54 anos de hemorragia cerebral.

O primeiro titulo do livro foi "Alma Solitaria" (Solitary Soul), em seguida foi trocado para "O Despertar". Publicado em 1899, boicotado e republicado 50 anos depois, narra a historia de Edna Pontellier, uma mulher adultera, assim como Madame Bovary e Ana Karênina que buscavam um sentido para vida e também a liberdade para se expressar. O despertar aconteceu quando imaginou que seria possivel viver sua propria vida, descobriu que era criativa (gostava de pintura e de musica), descobriu o seu corpo e o que podia fazer com ele, mas uma mulher daquela época nao poderia ter esses tipos de pensamentos, a mulher saia da casa do pai para casa do marido e o seu destino era parir o maximo de filhos que podia e anular-se completamente. 
Casamento e maternidade nao eram uma opçao e sim uma obrigaçao, mulheres que se opunham a isso eram consideradas histéricas ou outras doenças mentais criadas por homens para controlar a mulher. Isso foi tema de varios outros livros como "O papel de parede amarelo", da Charlotte Perkins Gilman, publicado em 1891, "Um quarto so Seu", de Virginia Woolf, "Mulheres que lêem sao perigosas", de Laurie Adler e Stefan Bollmann, entre outros.

Edna so casou com Léonce porque ele apaixonou-se por ela. Porém, esse casamento foi um escândalo na familia dela, pois Léonce era crioulo e catolico e ela era presbiteriana, mas so "de fachada", porque ela nem sequer se interessava por religiao. Achava que casando com um homem bom e respeitavel teria uma certa dignidade e fecharia para sempre os portais do romance e dos sonhos. Ele amava pelos dois, trabalhava o tempo inteiro fora e compensava sua ausência com presentes e guloseimas.

Edna também nao era maternal, tinha dois filhos, mas eles nao corriam para ela chorando quando se machucavam. Quando as crianças iam passar férias na casa da avo, ela nao sentia falta deles, sentia felicidade e alivio, mesmo nao admitindo isso nem para si propria. Achava estranho as maternais que idolatravam suas crianças e maridos como se fosse um santo privilégio se anularem como individuos e crescerem como anjos cuidadores.

Edna era uma pessoa ma? Nao. Ela nao tinha escolha, ela era o que nao queria ser, por isso o casamento e a maternidade era uma tarefa ardua, vivia numa sociedade opressora com regras crueis para as mulheres, por isso sentia-se solitaria e começou pouco a pouco a quebrar as regras.
O passado nao significou nada e nem ensinou nada, o futuro era um mistério e o presente era uma tortura:
"The past was nothing to her; offered no lesson which she was willing to heed. The future was a mystery which she never attempted to penetrate. The present alone was significant; was hers, to torture her as it was doing then with the biting conviction that she had lost that which she had held, that she had been denied that which her impassioned, newly awakened being demanded".
Léonce preocupa-se com a saude mental de Edna, acha que ela ja nao era mais a mesma pessoa, mas nao podia ver que ela estava tornando-se no que realmente era, sem mascaras, afinal era a primeira vez que ela nao estava atuando.
"It sometimes entered Mr. Pontellier's mind to wonder if his wife were not growing a little unbalanced mentally. He could see plainly that she was not herself. That is, he could not see that she was becoming herself and daily casting aside that fictitious self which we assume like a garment with which to appear before the world".
Ela começou a pintar e as pessoas desacreditavam, debochavam e desencorajavam-na:
"What are you doing?"
"Painting!" laughed Edna. "I am becoming an artist. Think of it!"
"Ah! an artist! You have pretensions, Madame."
"Why pretensions? Do you think I could not become an artist?"
"I do not know you well enough to say. I do not know your talent or your temperament. To be an artist includes much; one must possess many gifts—absolute gifts—which have not been acquired by one's own effort. And, moreover, to succeed, the artist must possess the courageous soul."
"What do you mean by the courageous soul?"
"Courageous, ma foi! The brave soul. The soul that dares and defies".
Léonce vai buscar conselhos com um médico, pois as atitudes de sua esposa estavam incomodando-o, principalmente essa noçao de direito das mulheres que ela andava falando por ai.

Her whole attitude—toward me and everybody and everything—has changed. You know I have a quick temper, but I don't want to quarrel or be rude to a woman, especially my wife; yet I'm driven to it, and feel like ten thousand devils after I've made a fool of myself. She's making it devilishly uncomfortable for me," he went on nervously. "She's got some sort of notion in her head concerning the eternal rights of women.

O médico pergunta se ela nao esta envolvida com o "circulo de mulheres pseudo-intelectuais-seres superiores super espirituais", mas Léonce diz que ela nao faz parte de nenhum grupo, é tudo da cabeça dela.
"Has she," asked the Doctor, with a smile, "has she been associating of late with a circle of pseudo-intellectual women—super-spiritual superior beings? My wife has been telling me about them."
"That's the trouble," broke in Mr. Pontellier, "she hasn't been associating with any one. She has abandoned her Tuesdays at home, has thrown over all her acquaintances, and goes tramping about by herself, moping in the street-cars, getting in after dark. I tell you she's peculiar. I don't like it; I feel a little worried over it."
Ela nao queria ir ao casamento da irma porque para ela, casamento é um dos espetaculos mais lamentaveis da terra.
She won't go to the marriage. She says a wedding is one of the most lamentable spectacles on earth.
Também pensava em ter uma casa so dela onde poderia pintar e ser ela mesma. Gostava de solidao, e de passear sozinha para refletir.

Nem comentei o livro em sua totalidade porque na internet ja tem resenhas aos montes, apenas apresentei minhas anotaçoes, pois tratam-se mais do lado emocional de Edna e da condiçao da mulher no começo do séc. XX. Também nao comentei o final por motivos de spoilers, mas era so daquele jeito mesmo para se libertar da opressao e das cobranças, infelizmente.
Fiquei bem surpresa com este livro. Quem lê hoje em dia nao vai achar nada demais, mas tente fazer sua mente voltar no tempo e coloque-se no lugar das mulheres daquela época para perceber que Kate Chopin foi bem audaciosa em falar de assuntos tabus como: a negaçao da religiao, do casamento, da maternidade, da anulaçao da mulher na sociedade, da solidao, da depressao e de adultério. Se ja era condenavel um homem falar disso, como foi no caso de Flaubert, imagine para uma mulher na sociedade sulista americana... 

Até hoje quando uma mulher diz que nao quer casar ou ter filhos as pessoas estranham. A procriaçao ainda é quase uma regra, mesmo tendo mais de 7 bilhoes de individuos no planeta.
Naquela época era impensavel querer ser artista ou escritora ao inves de ser esposa-mae, quem ousava pensar, so podia estar louca, afinal ser esposa-mae era o unico papel que a mulher desempenhava na sociedade. Declarar-se lesbica por exemplo, essa possibilidade nem existia, seria internada e lobotomizada. O unico jeito de evitar um casamento era entrando para vida religiosa, isso se era catolica, a unica religiao monoteista que permite a reclusao da mulher de alguma forma, o que ja nao acontece no meio protestante, islâmico e judaico.

O assunto nao acaba por aqui, nos proximos dias falarei do livro que citei acima, "O papel de parede amarelo", da Charlotte Perkins Gilman, sobre a "loucura feminina/ histeria"; também falarei de "Orlando", da Virginia Woolf, sobre identidade e gênero e do livro "Uma China sem mulheres?", sobre a vida das chinesas e o feminicidio. Sabe o que é pior? Pouca coisa mudou desde entao. Embora haja uma melhoria consideravel da condicao feminina nos paises de primeiro mundo e um despertar feminista tardio nos paises ocidentais em desenvolvimento, a maioria das mulheres dos paises pobres que também é a maioria das mulheres do mundo, vivem em condiçoes de pobreza e submissao, sem acesso à educaçao, ao mercado de trabalho, sao vitimas de casamentos arranjados, sao controladas pela familia, pelo estado e por religioes fundamentalistas, isso representa 2/3 da populaçao feminina. Sinto-me privilegiada por fazer parte de 1/3 das que tiveram acesso à educaçao, ao mercado de trabalho e pude casar por livre e espontanea vontade e nao por arranjamento ou imposiçao. Mesmo tendo privilégios, serei sempre feminista, porque a maioria nao tem acesso aos direitos basicos, muito menos tratamento igualitario entre gêneros. 
Na maioria dos paises, mesmo os ricos, o estado e as religioes impoem regras sobre o que a mulher pode ou nao fazer com o proprio corpo, enquanto que para homens nao existe nenhuma. Enquanto houver disparidades, estarei na luta. Talvez nos anos 2100 ou 2200 seja um tempo melhor para nascer mulher, se o planeta durar até la. É isso!

Meu teclado nao tem a acentuaçao do português e nao sei como colocar, desculpe-me pela falta de alguns acentos no texto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário